sexta-feira, 22 de março de 2024

A centelha que move a vida



 A angústia emerge como um grito da nossa pífia sensação liberdade e da consciência necessária de nossa finitude. Ela transcende o mero estado emocional, revelando-se como catalisadora de questionamentos profundos sobre o propósito da vida e sobre o confronto inescapável com nossa própria dolorosa existência. De fato, a angústia se revela como a força motriz que impulsiona a roda da vida, incitando-nos a buscar significado e compreensão em meio às complexidades do ser. A angústia, portanto, é a centelha primeira que acende a luz da vida e vai queimando até os confins da nossa existência.


(Imagem: Washington National Cathedral Gargoyle)

quarta-feira, 13 de março de 2024

Ato primeiro: amizade colorida



Desenvolver um sistema filosófico para abordar questões tanto pretéritas quanto atuais, considerando os diversos contextos, é deveras desafiador - como fazer uma peça teatral. É um trabalho árduo, ardiloso e muito difícil e... delicioso. Assim sendo, pode-se aventurar nos palcos da Ética, da Lógica, da Estética, da Epistemologia ou adentrar-se no abismo Metafísico.

No entanto, é importante que qualquer indivíduo estimule em si mesmo um sistema filosófico, um mero ato de filosofar; ter sua linha de pensamento, seu método de palavras e escritas onde que neste sistema encontra-se o mínimo de respostas à problemas conflitantes, seja dentro de um domínio específico e variante - levando em conta as circunstâncias do nosso tempo -, seja de uma forma mais abrangente e fixa - recorrendo a outras antigas épocas.

É preciso filosofar. Deve-se ir de encontro para ser encontrado. Como um ator indo de encontro a sua personagem. Para tanto, é necessário um verdadeiro amigo - não necessariamente uma pessoa, talvez uma ideia. Ora, todo encontro necessita de duas partes; assim como todo movimento é resultado de repouso e força, i.e., um diálogo resultante entre duas partes em oposição.

Por conseguinte, é preciso haver o desgastante debate filosófico a ponto de se esgotar (ou não) toda e qualquer possibilidade de dúvidas. É encerrar um ato, mas deixá-lo aberto para o próximo. Com isso, podemos refletir o que nos cerca, o que nos toca e seguir adiante - um devir em uma longa peça teatral.
 
Ademais, é preciso questionarmos, não a tudo externamente como que de forma aleatória, mas a nós mesmos em primeiro lugar. O eu. O ator principal! A educação filosófica, ou o exercício da reflexão, neste sentido, deve fazer com que comecemos conosco mesmo qualquer ensaio e assim deixando para trás qualquer situação desafiadora com honestidade e coragem.

Nos palcos da vida, onde a sabedoria é a personagem principal, a Filosofia também é convidada a encenar. Atuam como numa bela dramaturgia ao conhecimento. Com este advento, somos chamados a sermos amigos de nossa própria existência, abraçando a essência de nossa própria sabedoria.

Portanto, que, ao dialogarmos com as necessidades que nos movem, encontremos nosso ato no vasto teatro do mundo. Que as cenas de nossa história se tornem um testemunho de nossa busca filosófica, um holofote que ilumina o caminho para o nosso âmago, onde apenas o saber floresce

domingo, 1 de outubro de 2023

Eu só queria comprar pão


HOJE
cedo saí de casa, atravessei a rua e fui comprar pão. Fi-lo rapidamente. No entanto, trouxe pães frios, aqueles já do fim da cesta. Ao chegar em casa e depois de esquentar a água, pôr a mesa para o café, vi que não tinha manteiga e nem café. E, cá entre nós, comer pão sem manteiga e café é pior do que fazer sexo com bonecas infláveis da Shopee. Então, eis que voltei à padaria para comprar o que mais faltava para o meu café da manhã.


Notei que estava saindo pão quente - devido ao forte cheiro de pão no forno - e fui tentado a comprar mais. Percebi que a fila do pão estava enorme. Nela estavam: uma barriga, com bastante tecido adiposo; uma salsicha, tomando água de salsicha com gás; muitas crianças, parecia dia de São Cosme e Damião; um playboy, que se sentia na fila da entrada VIP da boate, e, por fim, o próprio dono da padaria. Isso não seria uma imensa fila, mas a quantidade de crianças era desesperadora.


Comecei a ficar impaciente, pois o tempo passava e o meu sagrado café tardava em sair. A barriga, a primeira da fila, perguntou, aos berros, quem ia servir o pão, pois via-se que não tinha nenhum atendente na padaria. O padeiro, obviamente, estava aparvalhado fazendo mais pão. Era notório que ele só fazia aquilo na vida, porque a padaria tinha vários prêmios de "pão fresquinho na hora". Eram exibidos com orgulho, como troféus, por toda a parede do estabelecimento. Já a salsicha, entediada, pediu mais uma garrafa d'água com gás a um quadro que estampava a foto do funcionário do mês - que na verdade era do próprio dono da padaria. O então funcionário perguntou-a: tenho água de salsicha, pode ser? Este, no quadro, era o dono, que na verdade estava no final da fila e não largava sua mala de viagem. Eis o paradoxo: quem realmente atendeu à salsicha? O funcionário do mês estampado num quadro ou o dono da padaria, funcionário do mês, na fila do pão?


Os mais chegados costumam dizer: Todo dia o dono da padaria tenta sair rumo ao exterior. Partir em uma viagem que parece ser longa, mas nunca acontece de fato. Sempre surge um imprevisto, uma intempérie - como por exemplo comprar o excelente pão fresquinho da manhã para desjejum de sua longa viagem. Então, para não ficar fazendo e desfazendo suas malas todos os dias, ele deixa a mesma pronta e a carrega para cima e para baixo.


Até que, do nada... No celular de alguém soou aquela notificação da Shopee. Após o alarme alguém disse, “pronto! Vai sair o pão" - pensamos coletivamente. De dentro da padaria, lá onde ficavam os fornos, vinha um cachorro imitando uma cacatua que imita cães. Vinha anunciando que o pão ia sair e perguntava quem era o primeiro da fila. A salsicha entrou por dentro da barriga e, de uma metamorfose heróica, surgiu um grande rosto réplica do grego Aquiles - mas com longa barba ruiva e vermelho de raiva, em formato de empadão fatiado (aqueles deliciosos empadões cortados em formato triangular, com o recheio escorrendo…) questionou a tez do pão: está muito branco.


Já os pães, sendo servidos por um cachorro - um lindo lavrador do sul de Santa Catarina, assentado pelo MST, que imita cacatuas que imitam cães -, começaram a saltitar ao saberem que iam partir para uma viagem alucinante. Despejado todos os pães na sexta - que já era noite - o playboy se empolgou. Não por causa disso ficamos felizes, mas porque a cesta era enorme e cabia ali uns 300 pastéis de feira e mais uns 200 pães. "Enfim…" - pensamos - "Vamos comprar nossos pães!" Então o playboy se pronunciou: tem duzentas crianças nesta padaria. Então, por favor, paremos para pensar... Todos reclamaram. E sugeriram o andar da fila. Então o pão começou a sair da sexta e caírem já sem desculpas na segunda. A partir daí, a fila, para pagá-los, começou a crescer. O caixa era alguém (ou algo) dentro de uma caixa fazendo o caixa na padaria. Fiquei curioso… Seria alguém da DiSantini?


De repente, um alvoroço. Olhei para aquela creche toda e pensei: "Fodeu! Acabaram-se os pães!". E realmente havia acabado. Tinha um pão para cada mão das criancinhas. E, nesse instante, o cachorro-cacatua, que trouxera os pães da então última fornada, os colocou na sexta e saiu correndo, porque já estava atrasado. Dizia ele (ou latia, ou imitava uma cacatua que imitava cães… Sei lá, você que escolhe): "Cacete, au, au! Já é a segunda feira que irei hoje. Não aguento mais! Estou com pressa. Fui! Au, au..." Enquanto o cão saía para a feira, após ter batido seu ponto, uma gata assumiu a panificação.


Entre assobios e elogios ela ia vagarosa e elegantemente para dentro da padaria fazer seu trabalho. Alguns ratos saíram em disparada lá de dentro e foram em direção à rua. Um deles dizia - em inglês - enquanto fugia: "A patroa chegou!". "Mas ela é uma gata!" - dizia outro.


Enquanto isso, a fila permanecia com a mesma configuração. Exceto pela saída do playboy. Mas estavam, ainda, as duzentas crianças - querendo mais um pão cada uma; o Aquiles empadão fatiado - que retornou à forma anterior, de barriga e de salsicha, já separadas - eu, mais o dono da padaria com sua mala.


Alguns momentos depois de três rodadas de duzentos pães servidos, a fila vagarosamente andou. Só que para trás - ninguém mais sabia se tinha que se dirigir ao caixa, se estavam na DiSantini ou se iam em direção à sexta-feira de pão.


Nisso, houve uma pequena confusão e eu passei a ser o segundo na espera. O dono da padaria, que ficou sendo o primeiro, nobremente me cedeu seu lugar: "Não como pão, mas prefiro pão…" - disse ele meio que pra si mesmo olhando cabisbaixo, estranhamente. Sem entender muito, enfim, consegui meu pão. Um apenas. Era um pão por CPF. Enfim, cheguei ao caixa. Em pouco tempo estaria em casa.


Enquanto isso um dos ratos, fumando uma guimba, olhou para mim - eu na fila pagando a mercadoria e ele lá fora - perguntou-me em inglês: Ei, como as crianças conseguiram os seus pães? Cada uma recebeu dois. Respondi: Com seus CPFs, oras! Mas ele insistiu: Como? Se é só um pão por CPF? Eu retruquei: Sim! Mas estas crianças são da "geração X" e possuem também os CPFs dos seus pais, além dos seus personagens prediletos”. O rato continuou: E o dono da padaria aceita CPF de terceiros? E ele odeia geração X… 

E continuou o rato:

- Ah, prazer, meu amigo! Me chamo "Pig", sou de Nova Iorque.

- Pig? "Pig" em inglês quer dizer porco.

- Então... - disse-me o rato.

Enfim, como eu não sou o dono da padaria, me limitei à conversa. O rato saiu convencido de ter me vencido nos argumentos, dando uma última tragada na sua guimba e, logo em seguida, jogando-a dentro da padaria, saiu de tal forma como um maquinista sai do trem após chegar na última estação do ramal Belford Roxo ou de Brooklyn.


Dei-me conta de que não só não paguei pelo pão, como também perdi a vez na fila. Como o pão ficou frio na minha mão, ou melhor, gelado, retornei à fila da cesta do pão novamente. No caso só girei em torno de mim mesmo e pronto: já estava na fila certa.


Já se passavam ali… Não sei se horas, ou dias. Mas o que anunciou a passagem do tempo foi quando todos olharam e, em uníssono, disseram “Olhem, está chovendo! Que tempo doido, não falei?” Nesse ínterim, eu saí da fila e fui olhar ao redor. Logo quando eu botei o pé fora da padaria a chuva cessou. Não porque eu botei o pé na rua, mas creio que por falta d'água mesmo ou, talvez, racionamento por parte da natureza. Contudo, novamente, todo mundo em uma só voz, ao virem o fenômeno disseram, “Olha a chuva parou! Que tempo doido, não falei?” Percebi que quem fazia chover, ou parar de chover, eram aquelas vozes entoadas de uma só vez e não minha vontade de olhar o fenômeno ou de pisar na rua.


Ciente de que eu estava perdido no tempo, quis ver se com minha pressa fazia-o correr até os dias atuais... Péra?! Qual dia seria o atual? Alcançaria, eu, o dia em que eu saí de casa para comprar pão? Mas qual dia? Qual vez? Porque eu saí duas vezes para comprar pão com diferença de minutos entre uma saída e outra. E se eu voltasse, sem querer, à época em que eu era adolescente quando saia para comprar pão? Afinal, qual dia em que eu não saí para comprar pão? Comecei a chorar de medo. Talvez com pena, ou não, o caixa da padaria veio me dar uma palavra amiga. 

- Caro, tome aqui este livro, ele lhe trará conforto e respostas. 

- Obrigado, boa pessoa. Nesta fila e nesta situação, nada melhor que uma leitura.

O livro sugeria uma capa bem acolhedora de uma mãe - meio que estilo “pin-up” -, mas o bebê em seu colo parecia um pão. A obra em questão era “Meu Filho, Meu Tesouro” (1946), de Benjamin Spock. 


Finalmente, ao caixa perguntei se tinha café e manteiga, afinal, na verdade, me faltavam estes ítens para o meu completo café matinal e não mais o pão. Fui muito bem atendido. Recebi a manteiga, que vinha em forma líquida dentro de um botijão, de gás, além do café, em uma pequena xícara, que sorria, tinha lindos olhos e vírgulas...


Fiquei com vontade de comprar mais pão que estava saindo, fervendo, da 50ª fornada. As crianças até quiseram me emprestar um dos CPFs delas para que eu levasse uns 5 pães no mínimo, mas eu ia fazer render outra rodada de pães e isso ia levar não sei quantos meses ou anos. Eu já ia para a 50ª leitura do livro emprestado, então, deixei para lá. Até porque eu não aguentava mais ler sobre crianças e vê-las todas na minha frente.


Sendo assim, depois de tudo muito custoso, protegi meu único pão e arrisquei sair novamente. Para mim, era só atravessar a rua que eu estaria em casa, mas fiquei receoso com a chuva, ela me observava com sorriso de canto de boca, tipo a pintura da Mona Lisa. Nesse ínterim, eis que um carro pára na minha frente e me oferece uma carona. Eu avisei que não precisava, pois era só atravessar a rua. Mas quando olhei bem para dentro do carro e vi quem era, aceitei o convite imediatamente. Franz Kafta. O próprio! Assim, o próprio livro. E não a Metamorfose, mas sua biografia escrita por ninguém menos que o ex-ministro da educação. O livro dirigia e no banco de trás estavam, uma carta ao pai e um monte de kaftas frias no palitinho. Conversamos um pouco, pois o livro precisou fazer algumas manobras perigosas para me deixar na porta de casa. Ignorando a biografia, tive muito contato mesmo foi com as kaftas e a carta ao pai. Não ousei lê-la, mas joguei todas as kaftas dentro de um envelope, porque elas não paravam de falar "quando­ certa­ manhã­ o senhor Gregório do Vivier acordou­ de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama transformado em um kafta gigante, oh!".


Cheguei em casa anos depois, ou talvez algumas horas. Não sei precisar… - mas o que importa? Que diferença faz se você perde anos ou segundos para comprar pão? O que na verdade é o tempo, senão o prazer pela compra e, consequentemente, a sua mais refinada degustação e que envolve todo o processo de ir a padaria comprá-lo, chegar em casa e comê-lo?


Então, quando eu ia começar a lanchar, já eram umas quatro horas da tarde, eis que surge uma chamada de vídeo, vinda do aplicativo Telegram, de Dr. Freud - com aquela mesma cara de sempre, me questionou: "Você tem de escolher: ou a figura materna, ou a paterna; ou você toma leite, ou café". Chamada encerrada. Refleti muito. Quando voltei-me ao celular, para respondê-lo por texto, havia uma curiosa mensagem de um hacker se passando por mim: "Estou com arquivos que não possuem lógica alguma. Estão completamente privados de qualquer lucidez e não só: as mensagens são uma afronta à razão. Posso lhe confiar?".


Aceitei, porém com desdém. E a mensagem, com data de ontem, dizia:


"Meu caro, não estou com a mínima vontade de escrever para você. Nem para ninguém. Isto aqui, na verdade, é uma simplória introdução. Mas eu deixei o gravador ligado e, enquanto gravava, liguei o rádio e fiquei trocando de estação. Este é o arquivo em .MP3 original e há a transcrição em texto também. Ouça o que eu obtive - está transcrito identicamente do áudio para o texto - e leia-o. Segue:

… É mais para dizer que a fiz. Porque minha vontade mesmo era mandar todo mundo ir pastar. Ficam me pressionando, oras! Que saco! Porém, se você analisar isto com cuidado, poderá lhe ser muito útil. Preste atenção! Deverás tomar uma decisão por meio da insanidade (que é positivo, isso), sobre uma questão que lhe será imposta com muita seriedade, confesso. Entretanto o farás assertivamente. Veja bem, a questão é a seguinte: Não dê ouvido à razão. Nem ao Freud. Não leia nenhum dos dois Wittgenstein's (que na verdade são 5, mas os dois primeiros são evidentes) e, por favor, pare de assistir Geraldo Luís, aos domingos. É notório que isso está te angustiando. Deixe-me te lembrar uma coisa, deixe-me te dar um conselho (sei que vou parecer um bêbado anônimo): esqueceste-te de comprar o café e a manteiga na padaria, lembra-te? Você só comprou um pão por conta do teu CPF (cacete, isso não é um conselho!). Outra coisa, por fim: Escolha café com leite e bloqueie o Dr. Freud das tuas redes sociais e app de conversas. E se quiser afrontá-lo de verdade, escolha um capuccino. Ah, mais uma coisa: Você usa muita vírgula. Poupe-as um pouco mais. Cordialement (em francês) seu admirador, M.F."


Prontamente, já com o aplicativo aberto, perguntei sobre a veracidade da mensagem e se realmente ela se dirigia a mim; se podia haver uma mínima alteração, edição qualquer nas palavras do remetente, uma vez que foi transcrita do áudio e tudo mais; e das vírgulas realmente estarem bem empregadas e etc. Então o hacker respondeu: "Sobre isso, eu não sei lhe dizer. Não tenho mais nada aqui comigo, porque, como lhe disse, fui mudando as estações de rádio. Mas, no fundo, no fundo, acho que isso foi obra de um hacker. Já quanto às vírgulas, elas já operam sob a nova lei que flexibiliza as relações de trabalho. Fique tranquilo. Elas irão receber o que lhes é justo e irão se aposentar, quem sabe algum dia."


Após mais este fato, ou melhor, após todos estes casos acima, fui dormir com medo. Tive pesadelos. Acordei com os conselhos do meu amigo Wittgenstein estalando na cabeça. Ele dizia, este amigo vienense, "primeiro, meu caro, o mundo é tudo que é o caso; segundo, o que é o caso, o fato, é a existência de estados de coisas". Então, quando acordei, me deparei com a TV ligada. Passava o programa do Domingo Show, de Geraldo Luís. Ele contava intrigantes histórias de estados de coisas no mundo. Neste dia a história da vez era sobre o conjunto de fatos em uma padaria onde que a fila do estabelecimento era enorme e levava meses - quiçá anos - para terminar, além do paradoxo do último homem ser, realmente, o último da fila.



Mundo Vadio




Nas entranhas deste mundo tão vadio e vasto,
A vida desfila, indiferente ao nosso desgosto.
Ela não tem a obrigação de ser benevolente,
E nos lembra com crueldade do que é iminente.

Relações, intricadas teias de ilusão,
Nos envolvem em expectativas de decepção.
As imperfeições humanas se revelam em cada momento,
E as promessas de felicidade são um mero desalento.

O desconforto espreita nas sombras da existência,
Nosso controle é uma ilusão, uma falsa potência.
Nada, absolutamente nada, perdura no tempo,
A transitoriedade é a única constante nesse firmamento.

Viver, oh doloroso fardo que carregamos!
Um constante lamento, um peso que somos.
Enquanto a angústia permeia cada instante,
O mundo ao redor segue alheio, indiferente.

No espetáculo da vida, o que é mais espantoso
é a inconsequência da existência, o caos tenebroso.
Pois tudo o que buscamos, tudo o que desejamos,
parece desaparecer, como brumas que se dissipam ao vento.

A grandiosidade dos nossos sonhos e planos,
Desvanece-se como sombras em raios atinais.
E diante desse abismo de ilusões e desencanto,
Somos meros anfitriões de um velório aos prantos.

Ó mundo, és surdo aos nossos clamores!
Ignoras nossas dores, nossos amargores.
Enquanto enfrentamos a insondável escuridão,
tu prossegues, impávido, em tua indiferença, em tua imensidão.

Assim, caminhamos nessa jornada melancólica,
onde a tristeza nos envolve, como uma névoa etérea.
Enquanto buscamos sentido nessa existência incerta,
encontramos apenas a fria resposta: a vida é deserta.

Que nossas lágrimas se misturem às águas revoltas;
que nosso lamento ecoe pelas montanhas mais altas.
Pois somos pequenas criaturas, presas ao destino,
neste universo vasto, indiferente ao nosso caminho.

Em meio à melodia triste do ode ao pessimismo,
Afundamos‐nos nas notas do nosso próprio abismo.
E que entre as síncopes da vida encontremos um espasmo,
Um vislumbre de força, num mundo tão desdenhoso e áspero.

sábado, 30 de setembro de 2023

Seja aqui e agora



Ele parece feliz, sabe fingir.
Felicidade é categoria máxima
que alguém pode sentir.
Apenas um predicado, que vem numa caixa.

Lá está! Tão só em meio a um lugar repleto de gente
Cheio de tantas colocações,
cheio de si, de emoções,
que a si mesmo nem sente.

Vai ele… Perdido em caminho reto.
Vive escorado em muletas;
confunde céu com teto.
Desfila em sua categoria perfeita.

Belo dia, um espelho.
Encarou-se de repente.
Pensou num conselho.
E o fez a si carente:

Amigo eu, meu íntimo,
Exponha-te, apareça!
Cadê o você legítimo?
Surja, antes que eu me esqueça.

A ti não vejo, meu eu.
Por que não te refletes?
Não és um espelho meu?
Queres uma prece?

Seria isto um espelho?
Por que esta vastidão?
Não queres meu conselho?
És uma quimera, ilusão?

Medo eu não tenho, portanto.
Sinto que agora me encontrei.
Olhei para meu ser de pronto,
assim que das facetas larguei.

Agora me noto,
acordei do sono.
Sou o númeno,
não mais fenômeno.

O mundo é real.
Tudo é aqui.
Eu sou aqui.
Eu sou real.

Sou único,
sou diverso;
do meu jeito, porém,
no todo universo.

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Terror noturno



O que eu sinto? 
O que me toca? 
Talvez um certo instinto,
um medo que me corta.

Um abrupto pesar,
porém intenso medo.
Não consigo respirar
nem guardar segredo.

Tudo me corrói,
me alucina.
Medo que destrói,
terror que me atina.

Não tenho coisas bonitas pra contar,
por mais que as tenha.
É possível me sabotar;
não há paciência que me detenha.

Meu pavor acordaria os mortos,
meu grito ecoaria nos confins.
Deterioraria os corpos,
os anjos fariam motins.

Já estou acostumado.
Sonhos, nem tenho mais;
dessa dose estou viciado,
pavor ao invés de paz.

O vento me confunde lá fora:
parece passos, traços, anúncio.
Ouço coisas... ou está silêncio?
De lugar nenhum quero ir embora.

Sim! Quero fugir, mas de quê?
De todos, do meu próprio ser?
Eu não estaria livre, certamente;
a solução seria não nascer.

Depois do breve espetáculo,
uma mão invisível surge.
Me põe num receptáculo
e a passageira paz urge.

Nesse eterno ciclo resido,
nesse breve embate sigo.
Ora apelo ao diazepina,
ora me vejo eu comigo.

Não há luz no fim do túnel,
não há palavra nem sentido.
Há o gosto amargo do fel
e a hora do meu eu inimigo.

sábado, 27 de maio de 2023

Ferro de Madeira

 


“Para mim não faz diferença que o tipo de homem mais míope, talvez mais honesto, certamente mais ruidoso que hoje existe, nossos caros socialistas, pense, espere, sonhe, principalmente grite e escreva mais ou menos o contrário; pois o seu lema para o futuro, SOCIEDADE LIVRE, já pode ser lido em todos os muros e mesas. Sociedade livre? Sim! Sim! Mas sabem os senhores com o que ela é feita? Com FERRO DE MADEIRA! Com o famoso ferro de madeira! E nem sequer de madeira…”. (Nietzsche, A gaia ciência, §356, trad. Paulo César de Souza, São Paulo, Companhia das letras, 2001).

 

O termo "FERRO DE MADEIRA" foi a expressão usada por Nietzsche para se referir a algo que parece sólido, forte e confiável, mas que na verdade é fraco e pode se desfazer facilmente. Em outras obras ele usa o termo "pés de barro" - como na Gaia Ciência e, salvo engano, no Crepúsculo dos Ídolos - como mesmo sentido. 
No entanto, no trecho citado acima, Nietzsche usa a expressão para criticar a noção de sociedade livre, afirmando que ela é feita de uma falsa liberdade, ou seja, de uma ilusão que se desfaz facilmente. (Logo, percebe-se que não há liberdade alguma). 
A leitura das obras de Nietzsche é complexa e toca em questões profundas. Para compreender suas ideias, é necessário entender o contexto em que foram escritas e compreender suas críticas feitas em sua época. Apesar de ser um pensamento provocador e chocante, é fundamentado e tem um certo fundo de verdade. Nietzsche escreveu seus textos de maturidade enquanto estava doente, mas sua lucidez é notável e cabível nos dias atuais. Suas críticas podem deixar o leitor mais revoltado, seja com ele ou com seus algozes. Em resumo, CUIDADO! Nietzsche é um filósofo que pode machucar.

ATUALIZAÇÃO BETA v.5.7.0: AGORA MEUS ELETRODOMÉSTICOS SÃO PÓS-ESTRUTURALISTAS

Dizem, os pós-estruturalistas , que a linguagem constrói a realidade. Isso é ótimo, exceto nos dias em que eu preferiria que minha realidade...