O Mal



O Filme ”O Ritual” (2011) trata do percurso de um seminarista cético e decidido a abandonar sua vida como religioso na igreja católica. Durante este processo, seu superior o orienta a passar um período no Vaticano para estudar rituais de exorcismo - talvez com intuito de o jovem noviço reforçar sua crença. Nesse ínterim suas dúvidas e questionamentos só aumentam, porque é nítido o ceticismo ante a teologia, sobre a questão do bem e do mal e, enfim, a descrença em Deus, quando nada de novo acontece nestes dias. Eis que surgem alguns acontecimentos, que é a grande virada no filme, que faz o jovem seminarista ganhar uma forte crença por conta de um caso intrigante de exorcismo: não uma crença em Deus e Seus milagres - primeiramente -, mas no mal e suas artimanhas. Então, surge uma questão lógica: primeiramente, seu ceticismo o deixava no mesmo lugar: não tinha fé no mal, nem em Deus; ademais, sua descrença em Deus não era condição para crer que o diabo existisse. Todavia, uma vez que ele passa a crer em uma das duas situações, no caso, que o mal existe, logo, o seminarista passa a crer no bem também. A partir de então, com esta constatação, com sua crença em Deus, Ele passa a representar o bem supremo e o diabo o mal equivalente.

Confesso que, após assistir ao filme, fiquei muito crente na existência de um mal; um mal que nos ronda, que nos observa e nos tenta. Obviamente um mal externo que eu não sabia explicar, mas tinha fé que existia. Estranhamente, eu nunca ousei questioná-lo; jamais tive a coragem de enfrentá-lo ou, sequer, ignorá-lo por completo. Criei a ideia de mal e passei a temê-lo, a respeitá-lo. Concebi algo inexistente.

Entretanto, com o passar do tempo, através do exercício filosófico natural da nossa existência, em princípio, percebi que ao longo da nossa existência houve um processo de idealização em respeito a este tema: o mal. 

A começar pela Ilíada, de Homero, através dos seus belos registros, houve, na Grécia antiga, uma exaltação à bravura, aos guerreiros, à busca pelo reconhecimento e pela eternização de seus feitos. Não havia espaço para fracos, medrosos, covardes. As lutas eram marcadas somente entre os nobres homens e, inclusive, deuses. Sim, deuses brigavam, tramavam e apoiavam, alguns, os gregos e, outros deuses, os troianos. Via-se também que os deuses conviviam, estavam presentes. O Olimpo era aqui na Terra, um pouco acima das nuvens; havia morada também de outros deuses nas profundezas dos mares e da Terra. 

Dentro desse universo, podemos ver que não havia um fundamento moral, uma verdade, não havia ideia do mal - do que era a maldade - e, consequentemente, do bem - e suas bondades. Já nos primeiros cantos da Ilíada, via-se invasões de terras, povos escravizados e mortos de formas cruéis. No entanto, aquilo tudo era o que era. Os jogos entre os deuses; as batalhas interpessoais; as belas escravas, Criseida e Briseida, sendo manipuladas em disputas; Helena deixando seu marido, Rei de Esparta, numa fuga com Paris… Tudo sem o mínimo senso de moral, de zelo; nenhum princípio era posto à frente das atitudes, nenhum respeito mútuo e tudo aquilo com a aprovação ou retaliação dos deuses.

Séculos depois, ainda no ocidente, com o decálogo de Moisés ao advento do cristianismo, algumas noções foram ganhando forma e lugar. As leis que Deus teria dado a Moisés seriam uma forma de compreender todas as nossas ações enumeradas em dez deveres. Eis as leis definitivas para que o indivíduo levará consigo para se ter uma vida virtuosa. Esta espécie de princípio da moralidade foi se alastrando, se estabelecendo e, a partir daí, algumas coisas foram postas em margens opostas do rio da vida. Bem e mal foram inculcados nas mentes daquela época: virtude e vício, certo e errado, pecado e obediência e, por fim, Deus e o Diabo. Aquele que não caminhar nas linhas definitivas dos mandamentos, será considerado um pecador, um violador das leis e portanto, o mal - sem contar o mundo das ideias e o mundo dos sentidos, onde que se foi criado um mundo externo para aplicar neles todas as imperfeições que assombravam a nossa realidade mundana.

Mais séculos à frente, um filósofo chamado Immanuel Kant, tratou de reduzir praticamente todas as nossas atitudes em uma só, em um só “mandamento”, ordinariamente a chamada de "regra de ouro”. Eis o seu famoso conceito de imperativo categórico. Isso é até coerente, porque, o ser humano não podia estar limitado a apenas dez atitudes a cumprir para se estar dentro das benesses mundanas e suas relações. Isso até procede, porque, em vista dos dez mandamentos, o que dizer de uma pessoa que não viola nenhuma lei, mas que de alguma forma prejudica o outro? Não há um terceiro excluído neste jogo de bem e mal da moralidade cristã: ou a pessoa é boa, porque segue os mandamentos, ou é má porque as viola. Porém , nossas atitudes são milhares… O nosso agir, nossas relações. Somos afetados diversas vezes, quiçá em um único instante. Então, apenas dez leis não seriam suficientes para julgamentos certeiros sobre milhares de ações. Dessa forma, sendo impossível ampliá-las ao infinito, o sensato foi resumi-las em uma só. Uma que abarcasse todas as nossas atitudes. Uma lei que pudéssemos dizer: o que eu fiz foi bom. Com este único “mandamento”, Kant sintetizou todas as nossas ações, de todas as pessoas e de todos os lugares e tempo. 

Para não me estender muito, pararei em Kant para retomar ao questionamento que me fez demolir algumas destas questões supracitadas aceitas como verdades irretocáveis sobre o bem e o mal. Supondo, primeiramente, que existam fora da nossa psiquê: seriam eles entidades fora da nossa realidade, questões externas a nossa existência? Se sim, teremos que assumir um “fora” da nossa realidade. O que seria impossível, pois uma realidade primeira não pode criar outra realidade fora dela. Aceitável seria uma realidade criar algo para dentro de si, em seu universo. Logo, descarta-se a possibilidade de haver um bem e, concomitantemente, o mal externamente, transcendente. 

Em segundo lugar, supondo que o bem e o mal são imanentes, que estão em nossa realidade, então, não foram criados por nada externamente a nossa existência. Se isso procede, quem cunhou o bem e o mal? Como e quando se bateu o martelo sobre o que é o bem e o que é o mal? E mais: isto já veio escrito, anterior a nossa existência? Quem o escreveu? - e, se alguém ditou estas regras antes mesmo de nossa existência, já cai na contradição de algo ter dito do bem e do mal fora da nossa realidade - pois entendemos que não há nada exterior a ela. No máximo pode-se dizer que o bem e mal são criações de convenções das próprias pessoas. 

Mas agora, outra questão: se bem e mal foram criados, o foram em algum momento; então, que momento foi esse? Por quais pessoas? Algum papa, algum rei, antigos filósofos, os primeiros habitantes da Terra? Será que o pensamento destes, seja do indivíduo, seja de um coletivo, abarca todo e qualquer ser humano de cada canto deste planeta e de tempos diferentes? O que seria bom para os hindus de 3 mil anos atrás também era para os egípcios da mesma época? Quem era a medida para todo o bem e o mal a ponto de eternizá-los como bem e um mal supremo? Qual era a régua, qual balança que se usou para medir o bem e o mal? Então, com certeza, pode se dizer que esta aplicação de bem e mal é subjetiva; é um julgamento individual e diversifica-se com o tempo, com as vivências, com contextos distintos. Logo, não se tem uma equidade para se dizer o que que é bom para um indivíduo ou para um povo em espaço e tempos díspares. 

Portanto, uma moralidade que traz a ideia do que é bom e o que é mal está, analogamente, em uma correnteza, em um fluxo quase que heraclitiano, onde que não se pode entrar duas vezes no mesmo rio - quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou: a mesma coisa se dá com esta sensação de bem e mal. Não há uma ideia fixa, eterna de bem e mal. Estes quesitos morais, adotados por aqueles que acreditam em algo superior transcendente, estariam - caso entende-se que há um bem e um mal exterior - em constante devir. Sendo assim, seria correto afirmar que a ideia de bem e mal são fincadas em bases nada firmes, sob fortes correntezas. 

Ademais, é importante entender que, o que existe, de fato, é a nossa potencialidade, nosso agir, nossa relação para com o próximo e que vão se modificando conforme o tempo vai perpassando nossas vidas e trazendo outras, com novas experiências e potencialidades - dado que não existe nada sobrenatural, nada além da natureza, externamente, que rege os acontecimentos do mundo. Esta questão, pois, traz-nos um problema. Se cremos que nos acontecimentos há uma ordem para além de nosso mundo, entendemos que esta ordem precisa ser obedecida, compreendida, que nos conforta e, assim, possamos seguir nesta ordem de mundo perfeitamente. Isto porque acaba surtindo, em nós, um efeito moral, pois esta ordem é vista como a verdade plena. Agora, se acontece um evento fatídico, por exemplo, uma injustiça, qual não se consiga compreender, aplicamos-na a este ordenamento verdadeiro externo, com finalidade de uma busca lógica, racional, para que expliquemos e nos consolemos diante da triste injustiça. Portanto, julgamos o que é mau àquilo que não conseguimos compreender, aquilo que foge a nossa compreensão.

Por fim, com base nestes conceitos da negação do bem e do mal, Spinoza e Nietzsche entendem de formas semelhantes o conceito em si, porém há uma leve distinção entre eles. Para Spinoza, o bem e mal são medidos por nosso estado de alegria ou tristeza e que, tais estados, sob a ação dos afetos, podem amplificar ou não nossa potência de agir. A partir disso o filósofo holandes diz que ainda que tenhamos um conhecimento real do que é o bem e o mal, não poderemos refreá-lo - não enquanto conhecimento real, mas sim como um afeto. Portanto, para Spinoza, bem e mal é um julgamento subjetivo em meio a afetos sob uma rede complexa de potencializações. Por outro lado, para Nietzsche, bem e mal surgem de interesses de classes, precisamente, da maior potencialização de uma classe em detrimento de outra. Assim, sua investigação se dá de forma histórica e crítica da maturação dos conceitos morais nas sociedades. De fato, o conceito de bem e mal, nasce do antagonismo das classes sociais, onde Nietzsche procurou investigar a historicidade das alterações que a moral veio sofrendo. Neste sentido, ele percebeu que as palavras bem e mal expõem uma a psiquê com origem no platonismo onde despontou o espírito de ressentimento contrários aos valores naturais da nobreza e da classe guerreira; isso provocou as classes inferiores, que tentavam usar tais valores para si invertendo-os. Além disso, é com o advento do cristianismo que consolida-se a ideia de que o que é bom é aquilo que é humilde e sem força em contrapartida daquilo que é forte e nobre, que é tido como algo ruim e, consequentemente, mal. Portanto, para Nietzsche, bem e mal é pensado de forma que o homem é, por natureza, um ser dominante, porque, lhe é intrínseco os instintos de dominação. Além do mais, a partir de uma perspectiva geral, há um julgamento mútuo, objetivo, entre as redes complexas de potencialidades das que dominam e das que são dominadas.


Comentários

  1. Interessante como pensar sobre o bem leva ao mal e vice-versa. Uma vez vez uma pessoa disse que o pecado era um instrumento de Deus (acho que ele só queria uma licença para pecar) e o argumento foi interessante, pois dizia que quando nos arrependemos do pecado nos aproximamos mais de Deus. Isso me fez pensar em como as ideias podem formar um ciclo.

    ResponderExcluir
  2. Bem complexo, muito bem redigido!

    ResponderExcluir
  3. Texto bastante reflexivo! 😊

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O minúsculo poder

Ou como se filosofa com uma agulha

É assim que tem que ser?