O alimento invisível no banquete da felicidade


O africano Santo Agostinho de Hipona (354 - 430), bispo, filósofo, no dia 13 de Novembro do ano de 386 - dia de seu aniversário -, cisma de fazer uma espécie de banquete, na verdade um simpósio. Ele insiste que as pessoas devem, não só alimentar o corpo, como também a alma. Dessa forma, ele oferece comida aos seus convidados e também Filosofia. Seus convidados são, além de sua mãe - Santa Mônica -, o seu irmão, filho e primos.

No decorrer das degustações, em dado momento, Santo Agostinho pergunta algo como “todos queremos ser felizes?”. Pergunta óbvia. Isso parece até imanente a qualquer ser vivente. Visto que quem já é feliz busca sempre um pouquinho mais; os infelizes, sabendo que são assim, buscam de alguma forma sair dessa situação. 

Outra pergunta sucede, então, daí: será feliz quem tem o que quer? Eis uma pergunta quase que axiomática, porém, há um fio muito racional que pode passar por este poro como resposta, que é: depende muito do que a pessoa deseja. Há um juízo de valor nesse caso, vejamos.

Uma pessoa pode querer portar armas de fogo e, nesse caso, as possui e as usufrui. Contudo, onde que um indivíduo irá ter pleno prazer, felicidade, em um objeto que foi feito para ameaçar a vida alheia e em último caso - invevitável - matar? Inclusive podendo extinguir a vida de seus queridos. Há quem conteste. Há quem diga que quem mata é o ser humano e não a arma. Tudo bem. Realmente, se deixar, o camarada ruim que é, vai matar outro com seus próprios dedos, ok. Agora, podendo facilitar o processo… Servir-se de mecanismos, ter outros meios para isso, então, fica, não só mais atrativo, como intuitivo. A arma  - metaforicamente - parece, nestes casos, aquela que usa àquele que tem seu porte.

Vamos a outro exemplo: é feliz aquele que quer cocaína, heroína ou “crack” e as têm? Sim, também, mas… Drogas quando consumidas de forma descontroladas, matam - e quando se consome de uma forma salutar drogas desses tipo? O usuário tem plena ciência desses casos. A overdose é comum. Além disso, o problema em questão: a droga pode possuir o próprio usuário; uma guerra entre a droga e o drogado; um querendo tomar a posição do outro é travada. Isso não pode ser o fim último da felicidade. Muito menos qualquer outro objeto físico, ou o corpo humano, ou qualquer bem material. Sendo assim, isso tudo não pode ser uma busca desenfreada de alguém, com intuito de ser feliz, porque estes bens perecem. 

Santa Mônica, mãe de Santo Agostinho, disse em meio ao diálogo: se queres bens e os têm, és feliz; se, por outro lado, queres coisas más, ainda que as tenha, és infeliz. Então o que deve desejar aquele que busca a felicidade e o que se deve desejar? Primeiramente é sabido que ninguém pode ser feliz quando não se tem o que deseja, mas o indivíduo que tem tudo o que quer, também não pode ser feliz. Logo, este é infeliz. 

Oras, desse jeito, qualquer pessoa sensata irá questionar dessa forma ao Santo Agostinho, ou sua mãe, por exemplo: eu quis ter filhos e os tenho. Amo meus filhos. Desse modo, sou infeliz? (Permitam-me responder pelos Santos [rs]). Sim. Porque há aí uma questão, acima citada, sobre se desejar algo perecível, não ser dependente das incertezas, nem estar sujeito às circunstâncias. Ademais há a questão (muito diferente dos casos da droga e das armas, como foi exemplificada, por favor!), que preocupa, é quando se é possuído pelo que possuís. Tudo isso culmina no terrível medo da perda dessa posse. 

Por exemplo, se o motivo da tua existência são os sete dígitos que possuis na conta bancária... Hum, problemas! Porque, quando esta riqueza toda começar uma gradual contagem regressiva, você irá perecer na mesma medida. Além do mais, mesmo que ela, pelo contrário, aumente, você sempre temerá qualquer prejuízo. O medo sempre estará presente. Por mínimo que possa ser o prejuízo. Há aí uma extrema necessidade em se manter o nível; uma busca desmedida por manter ou aumentar os lucros. Nesse caso, quem possui a quem mesmo? Pois quem teme uma perda, não é feliz. Portanto - voltando à questão dos filhos, no caso -, quem muito ama seus filhos, ou suas mulheres, maridos, parceiros, enfim, o teme por sua perda e, isso acontecendo, (é natural que sim, as pessoas morrem) aquele que for muito apegado, "morrerá” junto de certa forma. Tudo bem que alguns de nós superamos nossas perdas, mas algumas pessoas não. Ou seja, não há felicidade na perda de um amigo, de um parente, de um filho - o que é óbvio.

Entretanto, atentem-se ao problema de interpretação aqui que pode ser sobre o fato de não poder amar. Não seria o caso. O problema se dá quando o amor tem menos valor para uma espécie de posse e, pior, necessariamente, quando não acompanha consigo a felicidade. Seguindo o raciocínio lógico do diálogo, posse material qualquer não causa felicidade; é infeliz aquele que possui o que é mortal, perecível, caduco, que pode não estar mais presente quando se quiser tê-lo. Portanto, a felicidade reside no que é imaterial. O ser humano é, conforme o modo que se deseja. Todo cuidado é pouco porque as pessoas são possuídas por suas posses geralmente materiais e, quando não, por algo carente de felicidade. E mais: como garantir a felicidade diante dessas posses e, também, saber que elas não trazem consigo o medo de suas perdas?

Logo, o que se pode concluir dessa interpretação é que a vida de uma pessoa não pode ser cadenciada pelos seus desejos; o sentido da felicidade tem que tocar a pessoa que se ama, mas não pode ser por completo à pessoa que se ama. Isso não significa que não se pode ser feliz com as pessoas queridas, mas significa que não se pode encontrar a felicidade tão somente por causa destas pessoas.

Pois é, Santo Agostinho, além de santo era um exímio psicanalista. Eu que sou ateu, até passarei a rezar para esse cara - risos. Que incrível linha de pensamento a dele! Olha que isso foi um recorte pequeno de sua obra¹. 

Além do mais, por falar em rezar, perguntinha básica: qual a solução para estas questões postas por Stº Agostinho e Sua mãe? Geralmente a Filosofia só piora as coisas quando se trata de "solucionar"; respostas aporéticas são as mais comuns e as quais busca-se como finalidade a Filosofia. Porém, nesse caso, Santo Agostinho e seus amigos e familiares no diálogo, foram precisos. Sim, há solução. Um nome pequeno. Pequeno, porém, incomensurável; permanente, imutável; invisível - porque é imaterial; é o todo; tudo é: Deus. 

Enfim, Deus é amor que se pode amar. Não há medo nenhum em se amá-Lo plenamente; se entregar a Ele, nele confiar. Deus não é perecível e Sua eterna posse trará somente felicidade e nunca a tristeza, dado que não se pode temer a morte ou o Seu perecimento. Pode-se abraçar sem medo a essa causa porque ao possuir Deus, desejá-lo demasiadamente, assim Ele o possuirá de volta. Não será como a questão exposta sobre o dinheiro, as armas ou as drogas… Não! Será o amor permanente, imutável, incomensurável do Eterno.


¹ Referência bibliográfica:

AGOSTINHO, Santo. O Diálogo sobre a Felicidade (De beata uita). EDIÇÕES 70, Lda. 2014.

Comentários

  1. Silvio, não acredito que possamos encontrar a felicidade através da posse de objetos ou pelos relacionamentos que construímos. Creio que esta só se dá mediante a percepção do sagrado que somos nós, vejo o divino no homem e nos seres, bem semelhante a concepção Spinozista de Deus como natureza, apesar das injustiças e do mal, vejo que há muito de beleza no mundo e como caminho para a felicidade que considero que já reside em nós, cultivo bons encontros!

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