O Rio de Janeiro continua...


Outro dia achei aqui em casa uma carta dos Médicos Sem Fronteiras (MSF), datada de 2017, relatando um problema gravíssimo na região do “Triângulo Norte da América Central”, que é composto por El Salvador, Honduras e Guatemala. Na carta a ONG relatava que oferecia cuidados médicos e de saúde mental a dezenas de milhares de migrantes e refugiados daquela região. A coisa era tão grave nesses lugares que as pessoas estavam emigrando para o México e até Estados Unidos, devido a violência extrema a qual estavam submetidas. Ainda hoje essas regiões são as mais violentas do mundo, redutos das mais pavorosa gangue: “Mara Salvatrucha” ou “MS-13”. 

Com isso remeti-me à situação no Rio de Janeiro e pensei: por que as violências ou as condições, às vezes, desumanas nas favelas - algumas quais até conheço -, não compelem as pessoas para fora desses lugares? Por que não se vê um êxodo nesses lugares violentíssimos - diga-se de passagem - aqui no Rio? Ou uma revolta, sei lá... No entanto, fui um pouco além, e refleti sobre os que aqui brotam das migrações de suas terras natais: os nordestinos. Esses que vêm migrando para o RJ em detrimento das péssimas condições de vida lá - caso meio que paralelo e, para ser mais exato, contrário, do real motivo migratório traçado pelos irmãos da América Central. 

Primeiramente, se há migração, é porque, geralmente, a coisa está feia no local de origem. Isso temos que concordar. Por isso a comparação com os irmãos do Norte/Nordeste e de qualquer outro ponto cardeal dentro do nosso território. Segundo, a resposta que se tem, sobre um hipotético refúgio das favelas, uma vez que os nordestinos já estão instalados no RJ, é fazer outra pergunta em cima: sair da favela e ir para onde? É bem verdade e, de mais a mais, essa questão não serve somente para o nordestino, e sim para qualquer morador de favela, inclusive os cariocas, obviamente. 

Gostaria de esclarecer, também, que isso não se trata de xenofobia, isto é, palavras de ordens facínora como “volte para sua terra”, “aqui não é lugar para vocês” e etc, mas que é um questionamento sobre até onde vai um migrante em prol de melhores condições de vida, sendo que seu lugar de destino pode parecer mais hostil que o de origem. Se há preconceito de minha parte, é por conta das relações entre poder público e todas as pessoas que vivem no Rio de Janeiro, principalmente nas favelas. Porque, é dever do Estado prezar pelas vidas dos seus, enfim... Vou discorrer melhor sobre isso. 

Todavia, quero dar foco aos migrantes, repito, porque há todo um custo enorme, famílias que se desfazem, enfim, toda uma vida deixada “para trás” em busca de algo melhor para si. Só que, ao se depararem com a realidade, a pergunta que poderia ser feita é “isso daqui é melhor do que eu vivia antes?”

Sobre a resposta “sair da favela e ir para onde?” Antes de mais nada, também cabe aí uma réplica: por que saíram da terra natal e vieram parar numa favela, no RJ? Pois conforme dito acima, por mais que se tenha ciência das condições de onde vieram, e a questão não é só essa, mas, a qualidade de vida no lugar de origem. Na verdade pergunta-se: minha vida era pior que as das favelas que vou enfrentar atualmente? Ou melhor, quem vive hoje em alguma favela no Norte ou Nordeste, está pior do que alguém numa favela do Rio de Janeiro?

Antes de adiantar o assunto, primeiramente, vamos de um pouco de História: a da formação do povo brasileiro. Esse movimento que foi marcado a partir de fluxos migratórios, da busca contínua pela conquista, pela sobrevivência. Não à toa essa diversidade linda ao longo deste gigantesco país continental. Ademais, a fase inicial da industrialização brasileira, lá pelos anos 50, gerou um êxodo rural inegável. Teve-se também, acrescido a tudo mais, as inconstâncias das políticas, alternâncias de poder - afetando os ciclos econômicos - e carência de políticas públicas em detrimento das necessidades da população, etc. Daqui saem, vão-se para lá; deixa-se aquilo lá, vêm-se para cá… Essas migrações são compreensíveis então.  Parece que está no nosso DNA. Eis o múltiplo, diverso, aguerrido Brasil.

Segundo, as migrações ocorridas entre 1950 - 1980 (até hoje, diga-se de passagem) no Brasil, deixaram rastros: principalmente, a mais famosa, a mudança enorme do nordeste rumo ao sudeste. Um parêntese: com isso, vou tentar me ater somente ao Nordeste - RJ ao longo do texto, pois é de se saber que em algumas cidades do interior, principalmente, as oportunidades de emprego são escassas e há também um cenário de extrema pobreza, secas e dificuldades de sobrevivência - e creio não ter havido mudanças satisfatórias quanto a isso porque, hoje em dia, vê-se ainda migrações. Enfim, isso é o que mais se ouve em respeito ao êxodo a partir do Nordeste. 

Retornando à História, em síntese, com a indústria brasileira firmando seu desenvolvimento, por volta de 1950, a vinda de grande parte da população do espaço rural do Nordeste para os centros urbanos do Sudeste foi irrefreável e, como não havia espaço na capital do RJ para todos, muitos dos migrantes aportaram nas favelas, às margens da sociedade Fluminense e desde então é esse o processo.

Portanto, hoje, o que levaria algum indivíduo a deixar o Nordeste e tentar uma nova vida no Rio de Janeiro, sabendo que, a princípio, sua vida estará limitada à favela, a condições precárias, ao jugo de facções e a todo o tipo de violência? Eis uma questão difícil e que exigiria muito mais pesquisas e dados a respeito da atual implicação que leva a retirada do povo nordestino para o Sudeste. Ou talvez é o encanto que a cidade carioca transpassa, das telas da TV, dos demais registros, e toca o coração dos irmãos nordestinos? 

Porém o que se tem, superficialmente e, dá para se ter uma ideia, é que há, precisamente, uma busca por melhores empregos e condições de trabalho. Ainda conforme conta a História. Isso é nítido e digno, por sinal. Mas não responde o porquê dessas famílias ou indivíduos viverem debaixo do mesmo teto com o incansável e extremo perigo. Real perigo. Seja do poder paralelo, que está instituído e segue julgando, punindo e executando, ou do poder do próprio Estado que comete diversos crimes contra moradores desses lugares as vezes sem nem sequer julgar.

Parece que, tirando a questão da violência das guerras do tráfico e do poder no RJ, no mais, são problemas recorrentes em todo canto do país. Há miséria, condições insalubres, carência de necessidades básicas sim, de Norte a Sul do país. Cada qual com suas peculiaridades: alguns com problemas de nutrição, outros casos preocupantes de higiene pessoal, ou violência doméstica, tão comuns quanto os de seus vizinhos de fronteira.

Agora, quando se trata do Rio de Janeiro, a coisa fica feia. Por exemplo, o Rio tem 3,7 milhões de pessoas vivendo em áreas dominadas pelo tráfico. Sim, pode ser inegável que a violência no Nordeste venha a ser assustadora, embora incomparável com o que acontece no município carioca. No Rio de Janeiro, parceiro, o “bagulho é doido”. É profissional! Quantas dessas 3 milhões e 700 mil pessoas não têm vindo de outros lugares buscando o melhor para se viver?

Dado que, a julgar as facções do Rio, elas usam armamentos de ponta, advindas de países com as maiores estruturas bélicas e especiais para guerras entre nações; as polícias que atuam no Estado, embora com armamento pesado e todo aparato do Estatal para si, não parecem ter preparo para lidarem com as facções, ou com qualquer crime que envolve quadrilhas. 

Tudo bem que a PMERJ consegue muitos feitos e isso é visto também, mas não dá cabo de muita coisa em respeito ao tráfico de drogas e armas dentro desse inferno chamado Rio de Janeiro. Devem muito. Entendo que, quanto à violência em si ou às pessoas apostando suas vidas no tráfico, se entregando às facções, são outros assuntos que exigem muitas discussões - ainda que pertinentes -, mas não abordarei aqui.

Em meio a essa chacina toda, a PMERJ também sofre: o índice de morte por parte de seus praças também é absurda e, muitas das vezes, por ações covardes produzidas pelos criminosos, digo, ações tomadas fora do confronto direto. 

Pois bem, o Rio é um lugar tão bom como destino de migrantes que, desde 1998, por exemplo, o aumento das mortes causadas pela polícia é enorme e, a cada período mais recente, esses novos números vêm superando todas as outras estatísticas. Vejam: em 1998: 158 vítimas fatais das ações policiais; 2008: 652 óbitos; 2019, foram 732 e, incrivelmente, 2020 com 741, apenas no 1º semestre. Vejam que são as mortes contabilizadas. Há aquelas que… 

Será que ninguém percebe que seu lugar de destino, para uma nova e melhor vida, acontece um genocídio? Será que ninguém vê, principalmente que isso atinge, majoritariamente, as favelas cariocas - destino de parte dos migrantes -, dizimando assim a vida de, 80% casos, pessoas pretas, pobres e que, muitas dessas pessoas são inocentes, trabalhadoras? Porque - uma ressalva - se forem os mortos, traficantes em pleno combate com o Estado, seria compreensível, mas não é o que se vê em muitos casos. E ainda assim, quando o Estado age justamente (tsc) acabam tirando vidas inocentes da mesma forma.

O Rio é tão bom para se tentar a vida, que além dos bandidos de chinelo e bermuda, há de se contar também com os de farda, ou terno: a milícia. Esta que vem conquistando seu espaço em todo Estado. Ela age tão criminosamente quanto as facções e que, loucamente, há grupos de algumas dessas facções que estão se aliando aos milicianos. Lembrando que a milícia já domina quase 60% do território da cidade do Rio e tem, sob si, vidas: extorquindo-as, tirando suas liberdades, perecendo-as. Vidas de milhões de habitantes em suas áreas dominadas. 

Enfim, o Rio de Janeiro é um destino tão atraente que muitas dessas "áreas da milícia" não estão em favelas não - quando digo “favela” o faço como conceito geográfico -, mas já estão controlando muitas outras áreas. 

Então, o que faz com que famílias deixem o Nordeste para se submeterem à violência extrema, tanto de facções rivais, quanto de polícia? Porque, se a resposta for simplória quanto a de melhores empregos e “condições de vida”, fica difícil entender. Se for por causa da violência em suas terras natais, também não explica coerentemente. Ou são respostas convincentes? No mínimo fica no "zero a zero". Ninguém tem razão e isso terá que ser desvelado.

Ademais, possivelmente, salvo os índices de violência dos lugares de onde vêm os migrantes, a pobreza lá é vizinha e a precariedade de serviços públicos é moradora distante. São essas as relações que mostram a tão famosa desigualdade social e, o que mais impressiona, é o aglomerado de gente em poucos metros quadrados em condições precárias. Todavia, veja bem, o Rio é um lugar tão maravilhoso para se buscar uma vida nova que o censo de 2010, do IBGE, apontou 763 favelas na cidade. Abrigando 22% da população carioca, 1.393.314 habitantes. Sem contar a região metropolitana, com 1.702.073, ou seja, 14,4% da população da região sob um chão insalubre, ensanguentado. Destino certo dos migrantes. Adianta sair de um lugar precário e partir para outro horrível?

Ainda no IBGE (2010): Rocinha e Rio das Pedras possuem 124 mil habitantes, somando as duas. Creio que as com o maior número de migrantes nordestinos - ou que nasceram aqui, de pais nordestinos, ou que vieram depois de a família ter se estabelecido. Outros números tristes dessa terrível desigualdade: 3% não são instruídos, 27% possuem somente o ensino médio e 1% completou a faculdade. Cadê o incentivo do governo, seja Municipal, Estadual, Federal? Cadê, também, esse povo todo que vota, mas não cobra dos seus Vereadores, Deputados e Senadores? Mas enfim, isso é outro caso.

O Rio de Janeiro, local escolhido pelas famílias migrantes, é tão bom de se viver que 37% dos moradores de favela já sofreram duras abordagens pela polícia e chega a 65% entre jovens de 18 a 29 anos; para 73% dos moradores, as favelas são violentas, 18% as consideram muito violentas. 

O Rio tem seus problemas, mas é um lugar maravilhoso para se arrumar um bom emprego, viver em paz e ganhar uma boa grana, tirando o fato ”da violência, do tráfico de droga, da polícia que entra para matar bandido e morador” - aspas para um morador entrevistado no artigo fonte. 

Contudo, o mais impressionante, e inexplicável, “94% das pessoas que moram nas comunidades são felizes, otimistas e existe envolvimento emocional. O levantamento aponta ainda que dois terços não sairiam do lugar onde vivem mesmo que sua renda dobrasse. Sair da favela não é o desejo de 66% dos entrevistados, e 94% se consideram felizes, um ponto percentual a menos do que a média nacional” - segundo o Data Favela¹. Mas isso eu já ouço desde minha infância. Sei de muita gente que não troca sua casinha no morro, sua vida na favela, do jeito que está, por nada. Sobre isso já comentei em outra postagem sobre as micro relações, de grupos menores que não seja, necessariamente, entre "patrícios vs plebeus". Sem contar que há até mesmo relações interpessoais entre por exemplo um morador que possui bens como imóveis ou rede de comércio dentro da favela e aquele que vive ali de aluguel. Pois o camarada "burguês", na real, nunca vai querer deixar seu império.

Um relato pessoal: eu moraria numa favela, tranquilamente. Algumas que conheço então... Sim, moraria. Agora, essa questão da violência, dos crimes, das centenas de mortes, abandono dos poderes públicos e a exacerbação do poder por parte do tráfico é tudo muito custoso, penoso. Então, o que atrairia, numa pessoa, a viver numa favela, sabendo que sua vida estará nas mãos de bandidos e que facilmente poderá ser uma vítima fatal dessa violência? Da mesma forma que a vizinhança ou o espírito dos demais moradores seja maravilhosa, que há um senso solidário, pacífico e amigável, há uma preocupação relevante, deveras crítica, com a vida das pessoas que moram em tais condições nesses lugares. Eu me encontro nesse paradoxo.

Eis a reflexão: o que as favelas Rio de Janeiro têm de tão atrativo assim? O que faz com que tantas pessoas cheguem a este lugar que oferece riscos à saúde e que, além do mais, não há sequer o básico? Me refiro agora a todos os moradores migrantes ou nativos etc. Vide esse período pandêmico: o conjunto de favelas do Rio de Janeiro - contando Baixada Fluminense e região Metropolitana - já contabilizaram, ao longo de todo período de pandemia, mais mortes que países como Uruguai, Japão e Portugal², quiçá. Como tentar abafar que não há problemas em favelas? Como não dizer que as condições de vida nesses lugares deixam a desejar em relação a outros bairros vizinhos?

Outra coisa é que, pode parecer preconceito contra moradores desses lugares e os próprios lugares, mas não é. Não há ódio, nem nojo, nem nenhum problema quanto a isso. Eu vivo próximo, eu conheço pessoas, eu entro e saio desses lugares. Já conheci favelas com níveis degradantes na condição básica para sobreviver. As palavras ferem, porque sabe-se que tem vidas, pessoas maravilhosas ali e que parece que essas pessoas querem ou gostam de viver assim. Sabe-se que não, mas não tem como falar de outra forma sobre o descaso sobre esses flagrantes. O que deixo aqui é apenas um olhar no indivíduo, na sua escolha, entre deixar um lugar e partir para outro distante em todos os sentidos. Ademais, assim como tem muita favela que é um lugar comum como outro qualquer, de moradia, de boa vizinhança, ela tem seus problemas e são realidades. Eu nunca critiquei, ou expus qualquer discurso contra favelas, porém, nunca as romantizei também.

Por fim, da mesma forma que os irmãos nossos da América Central decidiram deixar suas cidades por causa de uma violência generalizada, penso: por que é que o Rio ainda atrai migrantes da forma que as coisas estão? Fica aí algo que eu não consegui explicar. Talvez há quem consiga, ou quem já tenha resposta para isso há tempos. Infelizmente, com esse questionamento todo, tive de mostrar o lado que ninguém quer ver, que talvez fingem não existir, que é o descaso do Estado e, o que é pior, até quando este toma uma medida, uma atitude e que deveria ser pelo bem da população, ele comete outros crimes em cima do outros que já estão estruturados. O problema maior do Rio de Janeiro não são as pessoas, mas o poder público. E haja poder...


Fontes:

¹ http://olerj.camara.leg.br/retratos-da-intervencao/favelas-cariocas#.X9Me0644Dyo

² https://experience.arcgis.com/experience/8b055bf091b742bca021221e8ca73cd7/


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ou como se filosofa com uma agulha

Seja aqui e agora

Ontem e hoje