O brasileiro pode se superar e viver uma democracia racial?

Senado e Câmara aprovaram Lei Áurea em 5 dias. Fonte: Agência Senado

Pensando no Brasil de hoje fui remetido a um conceito de Gilberto Freyre chamado de “democracia racial”, na obra "Casa-Grande & Senzala". Isso fez-me refletir rapidamente sobre um ponto: por que não foi superado o regime escravista além de outros preconceitos advindos do período colonial no Brasil? Haveria um motivo, ao menos, para essa superação? Pode-se até dizer que sim, mas há uns entraves nisso aí.

Primeiramente, esta é uma questão complexa e que não se pode responder simploriamente. Porém com o pouco que se possui de lembrança e conhecimento histórico dá para traçar um esboço como resposta e até mesmo introduzir mais questionamentos. 

Contudo, em segundo lugar, como se pode ver, um país tão diversificado etnicamente: pretos, brancos, nordestinos, nortistas, diversos povos indígenas, região centro, sul, sudeste… Território gigantesco, país continental e cada qual com suas peculiaridades. Esses povos resultam beleza e riqueza cultural: o Brasil encarnado. Isso deveria ser atraente e agregador às vistas do próprio povo. Só que não é o caso, assim, vamos dizer plenamente. Há rachaduras nessa democracia racial, no convívio entre pessoas com a mesma nacionalidade. Isso que não surgiu agora, nem há 50 anos, mas que é passado de geração à geração desde o início da exploração, em 1500. Portanto há de se afirmar que o regime escravista não foi superado, que guardamos ainda com ele muita intolerância. 

Outro ponto, a saber, é que a diversidade não é premissa necessária para tornar verdade uma harmonia, ou seja, é ingênuo pensar que diversidade traz consigo a união. Porém, também pensar que em meio às diferenças só ocorra preconceitos e segregação é errado. Tanto um caso como outro, não se pode generalizar. 

Retornando, então, à pergunta no primeiro parágrafo, sobre a superação do período de escravidão, deveria ser "normal", pelo menos, uma certa união com esse fim, além de respeito mútuo e progresso entre um povo de origem comum. Essa origem tão exposta entre colonizador e colonizado deixou herdeiros, por parte dos colonizadores, uma parcela muito ínfima da população. Por outro lado, os trabalhadores desta “terra Brasil”, seus verdadeiros filhos, se agigantam em quantidade e qualidade. Milhões de pessoas e suas diversidades: porém, povo com origens similares. O que mais poderia uni-los de verdade a não ser o fato de serem filhos da mesma Terra, do mesmo sangue, suor, das mesmas mãos que arquitetaram a diversificada paisagem desse território que hoje conhecemos como Brasil?

Infelizmente, todo dia sobe nos jornais um acometimento violento contra um preto, um indígena; um abastado com poder se sobrepondo a um pobre trabalhador... Parece haver uma guerra. Reina o famoso conceito de Karl Marx: luta de classes - mas daí entrar-se-ia em outro assunto, com mais ramificações e o texto se estenderia demais. Porém, havendo classes, realmente, não se tem paz. E vou além: não é só de uma simples disputa de interesses em que se originam os preconceitos, não. Há um genocídio em curso no Brasil. Há interesses tão maiores do que uma simples disputa que chega-se ao extremo. Isso sai estampado todos os dias na imprensa e nas redes sociais; diversos números e dados estatísticos “eufemizam” essa atrocidade; diversas fotos e vídeos conotam esses crimes pelo Brasil afora. Tudo pelo poder, pelo acúmulo de riqueza. Logo, quem sofre com isso?

Todavia, apesar de toda essa tragédia, ainda há uma premissa bastante forte para manter de pé a fé numa democracia racial e com isso tentar responder à pergunta lá do começo, qual evidencia, pelo menos, um motivo para superar todo o preconceito: os 388 anos de escravidão. Como pode o povo brasileiro, depois de tudo o que foi feito contra seus antepassados, tudo o que há de triste em sua história, não se compadecer consigo mesmo? Seria justo e, não só, mas natural, depois de tanto domínio, tanta concentração de poder, de terras e de gente, o cidadão brasileiro refletir sobre seu passado e seu legado. Expropriação de terras, exploração, negócios escusos, crimes hediondos em larga escala, dizimação de povos… E o que se configurou? Desigualdade, marginalidade (em todos os sentidos), injustiça, crescimento sócio-econômico desigual, disparidade enorme entre as classes sociais. Como pode isso parecer que é normal? O mais estranho é que a desigualdade no epicentro do problema se dá com pouquíssimos abastados, poderosos detendo os bens que a Terra dá. No mais, é todo um país com seus milhões de trabalhadores carentes destes benefícios que a Terra se dispõe a fornecer. Desse modo, superando esses problemas impostos pelo neo-liberalismo, achar-se-ia uma resposta para a pergunta: "por que não foi superado o regime escravista além de outros preconceitos advindos do período colonial no Brasil?" Eis que se teria que entrar em outro assunto, qual não é o intento desse texto.

Por que não parece revoltante ou, apenas comovente, toda história pretérita, a ponto de o cidadão, hoje, nunca mais aceitar qualquer tipo de preconceito ou injustiça por perto? Qualquer ato que remete ao terrível fato de outrora, lá pelos pavorosos séculos que edificaram a nossa pátria, deveria causar não só repulsa, mas também medo. Qualquer povo que, depois de findado um sistema, ou regime atroz, genocida, temeria qualquer traço deste na sociedade, qualquer marca, qualquer gesto. Mas não é o que se vê em sua totalidade aqui no Brasil. Por conseguinte, toda a atrocidade passada deveria, no mínimo, tornar o povo ansiando igualdade perante a lei e respeito às diferenças e caminharem juntos rumo ao que de mais há de democrático no país: a harmonia racial. Pois, depois de tanto sofrimento e sangue derramado, por que as pessoas ainda não se identificam umas com as outras? Pior, segregam.

Embora diversificado e multicultural, todos são brasileiros e têm um passado não lá muito louvável e isso requer reflexão, acerto, progresso. Não à toa se fala muito em dívida histórica. Tudo bem... O passado é um tanto doloroso, mas ainda resta um quê de orgulho. Esse seria o ponto fundamental para o vislumbre do progresso. Portanto, por esse motivo, apenas esse, a princípio, o povo brasileiro talvez pudesse ser o mais democrático, o mais unido possível entre si e recíproco para com outros povos. Unidos racialmente, culturalmente - apesar da disparidade sócio-econômica -, todas as identidades, unas, por si, tornariam o Brasil e os brasileiros mais justos e prósperos. Infelizmente esse tema torna-se utópico, difícil imaginá-lo, porém não pode cair no esquecimento, no desânimo. 

Por que utópico? Qual seria a dificuldade para se tomar o rumo da prosperidade? Outro percalço no caminho que não se pode ser esquecido: apesar do passado, e que, ainda há um esperança em orgulhar-se de si, o brasileiro, ainda esbarra em uma resistência ultra-conservadora, nos moldes escravocratas, xenófoba, deveras preconceituosa que, por menor que seja esse grupo, acaba por contaminar muitos inocentes de diversas gerações. Tanto fizeram com as posteriores como também aos que ainda estão por vir. Milhões de pessoas que estão expostas a um contágio de informações; discursos de ódio, ora camuflados no anticientificismo, ora relativizado, com intuito de distorcer os fatos e fadar uma minoria a uma espécie de vítima às avessas. Do fundo de vossas almas, certas pessoas não seriam preconceituosas caso vivessem outra cultura - ninguém nasce racista; pelo menos fossem sempre lembradas e remetidas ao problema que foram as longas e árduas viagens dos navios negreiros, o comércio de escravos e o que se resultou disso, certamente muitos cidadãos não estariam enroscados nas redes do racismo estrutural e demais preconceitos. Caso tivesse outra cultura, o Brasil, muito desses preconceitos evaporar-se-iam da consciência coletiva.

Vejamos, por exemplo, no ano de 2003, foi criado o Dia da Consciência Negra (20 de novembro) - detalhe, em 2003! Porém, este é um dia que poucos brasileiros refletem - pelo contrário, gera polêmica por causa de Zumbi dos Palmares e dos negacionistas (vide o atual presidente da Fundação Palmares, Sérgio Nascimento Camargo) que ainda relutam em afirmar histórias pouco embasadas cientificamente sobre o Brasil e sem contar os diversos ataques contra tais manifestações comemorativas; o feriado ocorre em 16 dos 26 Estados da Federação; em torno de 1200 municípios aderiram ao feriado, dentro dos 5570 de todo o país. Não me parece muito interesse em se rever a história, refleti-la, estudá-la, ou simplesmente respeitá-la.

Ademais, há, também, o dia 3 de maio: Dia da Abolição da Escravatura (1888). Esta que não é uma data comemorativa ou em homenagem a ninguém e sim um dia histórico. A partir de 1530 - quando oficialmente o Império português formou a elite colonial no Brasil e decidiu explorar sua nova terra descoberta - até 1888, foram 358 anos (pode-se contar a partir de 1500 também). Portanto, depois de 358 anos oficiais de regime escravista, o Brasil, o último a findar-se com esse regime, manteve o controverso dia 3 de Maio (não que ele não devesse acabar, mas da forma que foi e seus motivos reais) nos anais da história. Tudo muito tardio, muito atrasado e injusto.

Sobre o feriado supracitado, na verdade, não é referente a um dia onde se deva comemorar, fazer festa. Não é isso também, mas o que se vê é um relaxamento ante à importância da data. Tudo bem que os movimentos e coletivos, pesquisadores, cientistas, fazem de tudo para levar à sociedade o peso que há na história do país dentro dos 388 anos de escravidão (1500 - 1888) e o que foi herdado até então. Porém ainda há muita mensagem a ser levada e, quiçá, a lugares nunca ainda tocados por ela.

Enfim, o que entristece, quando não revolta, é que a cada dia ao assistir racismo, homofobia, machismo e demais preconceitos contra o próximo e presenciar a impunidade é não crer que possa haver uma solução por parte da sociedade civil brasileira. Parece que todos os justos estão impotentes. Não se esboça uma reação. Longe disso! Recentemente tivemos escancarado o famoso "quem é você?", "tu sabes com quem está falando?". Sem contar diversos outros casos de violência com vítimas fatais que não quero explicitar aqui. Isso torna "déjà vu" todos os 388 anos de crimes contra a humanidade. Está longe, mesmo que seja um rascunho, superar o passado histórico e parece cada vez menos haver motivos para isso.

Comentários

  1. Isso é muito importante, pena que os nossos governantes e algumas pessoas da alta classe esquece das suas origens

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