domingo, 14 de maio de 2017

Alguém em algum lugar

Não foi o mais longe que já consegui
Outrora cheguei ao outro lado do mundo
Esta foi uma longa viagem com tudo o que vi
Foi como um mergulho em mar profundo

Ah, que calma!
Ah, que beleza!
Ah, a sua alma
Ah, a sua clareza

Nunca senti aquele frio
Me tornei fã daquele clima
Buzinas sem darem um pio
Todos numa adorável rotina

Os largos e retos caminhos,
terminavam em algum paraíso
Como pássaros em seus ninhos,
num lugar onde voar é preciso

As companhias agradabilíssimas
Aprendi com todos, as suas histórias
De Osho, ditaduras, até aos comunistas
Dos dias difíceis e também os de glórias

Nunca falei tanto
Nem havia ouvido tanto também
Falei até em Esperanto
Diálogos que foram muito além

No final um mestre falou por alguns minutos
Todos estavam ali para vê-lo, dedicados
Um líder que conquistou o coração de muitos
Exceto daqueles que o querem crucificado

Se você fala de paz, você gera a guerra
Se você declara guerra, paz não há
Ninguém anda sem suas próprias pernas
Ninguém possuído de ódio irá amar

O que seria de nós sem um mestre?
E o que seria de um mestre sem os seguidores?
O mesmo que o oeste sem o leste
O mesmo que os lápis sem apontadores

Nos guiaríamos como?
E como escreveríamos?
Andaríamos sem rumo,
e sem leituras, morreríamos

O mestre falou, utopia renasceu
A benevolência enfim ganhou vez
A simpatia mútua só cresceu
E a ideologia ganhou solidez

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Psiu! Silêncio! E não se mexa.


...
...
Você consegue?
Claro! É fácil!
É só a boca fechar
Mas não é só isso
Difícil é a mente “calar”
Agora… Quieto! Imóvel!

...
...
Conseguiu tal proeza?
Fácil parece também
Controlar-se é um bem
Problema é quando não conseguimos.
Da inércia, fugimos
À mente, mentimos
Ao espírito, enganamos
O ficar, fugir
O fugir, voltar
Nunca estaremos parados
E assim se mantém nossa mente
de galho em galho sempre
Já dizia Heráclito
ou Hermes? Ou Frida?
“Tudo se move”
Também Galileo, arriscando sua vida:
“Eppur si muove”
De lá pra cá, aqui ou lá
Perceba quanta coisa se mexeu
Alguém morreu, outro nasceu
Quanta coisa mudou
Ontem uma criança, hoje avô
O tempo não pára
O atleta, uma flecha
O monge, uma rocha
Ambos envelhecem
Os olhos se abrem, o mundo à frente
Pássaros voaram, o Sol despontou
Lábios se tocam, algo se sente
Um belo beijo, à paixão despertou?
No mar, ondas se chocam
No ar, a brisa leva embora
Gritos que ecoam
sons que vêm de outrora
Tudo é movimento
Mesmo parado
Há um momento
Há um estado
Caindo em pé, correndo deitado
Igual a chuva, no velho ditado
Estamos sempre nos mexendo
O universo em movimento está
As estações, estrelas, o clima, tudo
Pensar, imaginar, sonhar
Também é movimentar
Até o estático se move
Se mexe, até o que não sai do lugar
Então pare, sinta, olhe e vá
Veja o que te move
O que se move
Mas o faça
Mesmo sem se movimentar
Apesar de, em movimento estar
Pois difícil é o pensamento parar
ou as galáxias também
Estamos adjacentes a isso
Não sentimos, mas estamos em pleno voo
Permita-se ao vazio, ao silêncio
À quietude, à paz e ao bem estar
Mesmo que por alguns segundos
Vale a pena tentar

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Rio de janeiro à dezembro


A cidade do Rio de Janeiro
Ah! Cidade…
De anjos e demônios és o celeiro
Como Paris, ora é tão romântica, apaixonante
Ora é tão horrível quanto o inferno de Dante
Contudo ainda é completamente bela
A beleza de sua própria natureza
A coragem e a humildade nas suas favelas
Jaz aqui o sangue da nobreza
Realmente uma cidade maravilhosa
O pôr do sol, parecendo tocar o mar
Se esconde rapidinho, deixando saudades
fazendo estrelas brilhar
É o céu mais encantado
Vem o alvorecer e pinta o Rio de dourado
suas avenidas, seus morros, cada lar
O azul mais azul, no horizonte
mescla-se com o verde mais verde
que brota da sua mais viva fonte
Da Ponte mais simpática
ve-se o espelho que a tudo reflete
Desde a mais pesada sujeira
A um senhor de braços abertos, inerte
Mas calma! Por nós ele olha sim
Para o pobre, para o nobre
Para quem usa seda, ou quem usa cetim
Nós é que para Ele não olhamos muito
Os esquecemos por completo
Pois aqui não se pára um minuto
Vivemos como um gado seleto
Seja dentro das indústrias
camelôs, qualquer comércio
A boemia, a religiosidade
O encanto, o desencanto, o céu, o inferno
Rio de Janeiro ainda é a cidade
De verão à verão, de inverno à inverno

O violoncelo


Era uma música
Em tom menor, enormemente compassada 
Rolava, em minha consciência, suavemente
Ora doce, ora muito pesada
Análogo a uma pessoa caminhando vagarosamente
dando largos passos num caminho enevoado
desviando aqui e ali de trevos
e do chão empoçado
Sua intensidade era agradável
Os graves imponentes
Os médios envolventes 
e os agudos instigantes
Era um instrumento só
Algo, ou alguém fazendo uma apresentação
Um anjo solista, ou o mal em auto compaixão?
Seu timbre era capaz de elevar
Tirar alguém do solo, literalmente
Apesar dos imponentes graves, a melodia era leve
Transformava tudo num cenário normal
Apesar da paisagem cinza, inerte
a natureza, o clima, tudo era frugal
Um majestoso instrumento
As cordas vibravam
O arco por elas passava
A cada movimento
meu submetido pensamento 
na neblina se mesclava
Sua caixa acústica recitava notas solenes
Meus olhos marejavam lágrimas perenes
Um dia que nunca tive
Uma caminho que nunca percorri
Uma música que nunca ouvi
Mas que sei que existem
E que meu coração persiste
Segue, sonha, luta para alcançar
E se apraz, como neste momento
Em apenas nisto meditar

sábado, 25 de março de 2017

Sentir na carne

A sociedade está doente
Desde a cabeça até os pés
Há feridos, moribundos e carentes
Tomam desde Rivotril até Dorflex

A longo prazo quimioterapia se faz
Consumindo remédios, fumaça e alimentos
O podre e vil, no corpo jaz
E mais incrível é o seu contentamento

Ácido, monóxido, sódio e até papelão
Morfina, cocaína, dopamina, glúten, zarcão
A sociedade crê estar saudável
pois é... Mas só que não

Nao é só a carne, refrigerante ou cigarro
Há um distúrbio em tudo, é claro
Ovos, frutas, verduras e legumes também
possuem veneno, agrotóxicos e até catarro

Uma dupla domina as mentes:
A mídia aliada à cultura industrial
Estão nas sepulturas​ presentes
dos que carne consome ou vegetal

Consumir carnes, ovos, verduras ou legumes
O fator sociocultural deve ser lembrado
Pratos cheios​ ricos e pobres pratos sem volume
Há quem diga, em Hollywood ou no “rato molhado"

Até a água vem a ameaçar
Bebe-se coliformes, “volume morto”
O pior de tudo, “tem que pagar”
milhares de contas, imposto…

Sociedade dos mortos-vivos
Ela acha que vivem bem
A cada garfada, vida em perigo
E em cada gole também

Não tem para onde fugir
A indústria estará onde a sociedade estiver
Não terá da vida nenhum elixir
Salve-se quem grana tiver

sexta-feira, 17 de março de 2017

Terror

Viver longos dias na escuridão é extremamente horrível, para quem já não possui mais seu corpo físico e suas propriedades, que é meu caso. Agora imagine similar dado a um humano? Doloroso, nefasto, eu sei. Fiquei sem falar durante muito tempo, nem muito menos ouvir nada. Até meu próprio pensamento as vezes era como se apagasse, como se um vácuo surgisse de repente e apagasse tudo. Era assim... Eu, somente eu, no completo escuro, na completa solidão quando me dei conta dessa minha atual situação. Até hoje estou assim… Minha consciência se dividiu em partes que não consigo mais juntar.  Quando tento, não sei o que passou, se horas, um dia, ou meses. No começo eu chorava, me agonizava, sorria de loucura, fingia estar bem, amedrontava-me, enfim... que terror! O eterno terror. Hoje, dotado com um pouco mais de razão, sofro menos.

O escuro é pesado. Ele não deixa você pensar, raciocinar, sorrir, nem chorar. A gente quer fugir, mas acaba ficando preso, porque aqui - e na verdade não sei nem onde estou - o espaço-tempo é relativo. Você corre, corre, corre e não sai do lugar. Você pensa, pensa, medita, porém, nada evolui. Tudo permanece como realmente está.  É como se estivesse querendo buscar água numa fonte em que seu trajeto é infinito, é um destino inalcançável. Você só se esforça, se desgasta e mais nada. Só há escuro, breu. O pensamento lhe acompanha, mas de nada adianta. Isso quando ele não atrapalha. Ele (o pensamento) lhe deixa à sorte, à mercê de algum milagre. Algo impossível por aqui. Não há milagres no inferno. Você se salva, sozinho, por si mesmo, ou... Digo mais: não é fácil atravessar certas cavernas, certos buracos que nos metemos na vida, digo também no pós-vida.

Existe muito escritor, muita gente que fala do medo, cita o medo, faz obras relatando o que é o medo, romanceiam o medo, mas eles não têm ideia do que realmente o é quando se está sozinho em um lugar irreconhecível, inóspito, escuro, sombrio, frio e sem nenhum barulho. A solidão passa a ser a melhor amiga, a maior companheira. É a coisa mais inteligente que temos ao nosso lado neste momento fúnebre. Pode nos salvar, sim! Mas pode nos matar mais ainda se a cabeça estiver fraca.

Os dias se tornam minutos; os minutos se tornam anos. Tudo é relativo, tudo é complexo, nenhum ser humano, o mais inteligente que se tem na aí na Terra, ou que se teve na terra, conseguiria viver em paz e viver serenamente em tais condições aqui. Nao sei quanto tempo já passou desde quando eu tomei ciência de que já tinha morrido. Isso tudo é uma loucura inexplicável. A mente do encarnado e o corpo físico são enigmáticos demais para mentes fracas. O corpo humano é tão perfeito... Mas quem faz uso dele em vida, o torna complexo. E a mente? É tão perfeita que o ser humano que a carrega, não a compreende nem 0,1% de sua capacidade intelectual, mental ou qualquer coisa de si mesmo. Agora imagina um ser com uma consciência normal, dotada de uma inteligência básica, uma pessoa comum, diga-se de passagem, que está sem as amarras do corpo físico, ou seja, que está solta pelo vasto mundo além-túmulo? Basta pensar, que tudo acontece. Tudo mesmo! Então reflita: como é que alguém perturbado vai pensar coisa sã estando no inferno? Não terá paz com sua consciência. Sua própria consciência, a sua própria mente é o agente perturbador. O meu ser, o meu núcleo, o que gera minha vida é algo que me perturba. Isso é tão paradoxal! 

Imagine uma pessoa em completa escuridão e solidão numa hora dessas? Vocês estão em seus lares com suas famílias, não irão pensar nisso nunca e eu desejo que não. Mas aqui… Impossível tentar ficar são. Não cheguem nem perto do que eu estou passando porque não há coisa pior. Portanto, sejam felizes! Mas sejam felizes plenamente. Não enganem, não enganem a si mesmos. O sejam de fato, porque se vier parar aqui por uma "falsa felicidade" ou por falsa esperança, - ou falsidade qualquer - seja por ilusão, egoísmo, vingança, desejos pútridos, o sofrimento terá o tempo de uma eternidade e o peso e a temperatura de Plutão.



Por isso façam ações caridosas, sem desejar nada em troca. Não o façam por vós mesmos. Pensem no próximo, unam-se, amem-se. E vossas orações, mesmo para quem vocês não conheçam, são de suma importância para os mortos e para mim também que estou aqui. Deixe-me tentar explicar: essa situação é como se fosse um livro, ou alguém com sabedoria em certos assuntos. Vocês quando tem problemas, quando tem dúvidas, quando querem ir em busca de alguma informação técnica, ou ajuda, vocês consultam livros, consultam-se uns aos outros, profissionais, amigos e parentes. E com isso as coisas andam, evoluem. Agora eu, aqui nessa escuridão, no silêncio, vou consultar o que em minha consciência perturbada? Vou chamar qual amigo ou parente para me livrar dessa situação? Não dá mais, já morri e meus parentes e amigos estão do outro lado. Nem entes queridos que morreram antes de mim estão me consolando… Deus é maior, mas Ele não pode me ajudar. Na verdade eu não quero ser ajudado. Ninguém pode me ajudar a não ser eu mesmo. Já clamei por Deus, Jesus, Alá, e… Nada mudou. 

Eu cheguei a conclusão de que preciso mudar a mim mesmo em primeiro lugar. Mas é muito difícil. O apego, a luxúria, o prazer… O ego… O remorso, ah o remorso! Minha mente ainda está muito nebulosa. Não estou sadio. E pelo que percebo estou sem fé alguma. Minhas orações e pedidos de socorro são da boca pra fora, eu sei. Sou fraco. Eu sei que existe algo muito mais forte do que minha consciência. Mereço isto tudo aqui. Realmente ninguém virá. Não tenho condições e ninguém tem condições nessas horas. Todavia, uma última esperança. Pode ser que me dê uma luz, consciência mais límpida. Pode me servir como um "diálogo", no mínimo, algo que me distraia, me faça esquecer do que já passou e do que está sendo agora. E quem sabe possa vir a me encorajar um pouco mais. Preciso de mais vozes externas e boas intenções do que essas vozes internas obscuras do meu coração. Só há uma saída, e a última: vossas orações. Uma intervenção. Quem sabe elas aliviem minhas dores. Possa eu obter coragem e força para seguir adiante e ter  vontade e sabedoria para me ajudar de uma vez. Uma luz de vossas orações que chegue aqui já é uma distração, uma esperança - pouca - porém é o que me resta aqui no âmago. Esperança... E lhes adianto: a última. 

Por favor, orem por mim, por nós aqui nesse inferno. Nos ajude e não nos tirem como o maus espíritos. Somos alguém ainda, fomos humanos, somos ainda uma consciência que deixamos a vida material. Deixamos nossos problemas físicos e entrelaçamos em outros espirituais. Todos nós temos problemas. Hoje estamos nós aqui, mas amanhã virão outros. Vocês... Claro, não é um desejo, mas é fato. Torço para que não aconteça isso com ninguém, pois só eu sei! Portanto, quem sou eu para decidir? O que fazem aí, repercutirá algum dia e seus caminhos serão tortuosos e entrevados. Desejo que não, mas do jeito que a humanidade se encontra, do jeito que a humanidade caminha... 

Este lugar aqui, seja lá onde eu estiver e seja lá onde mais existir lugares como estes onde me encontro, nunca deixou de ser frequentado. Essa escuridão toda aqui, esse inferno. Cada dia mais ficará abarrotado de mortos, almas opacas, perdidas, precisando de ajuda. Sempre foi assim. Mas esse número aumenta e confesso que não sei o que será de mim, uma alma realmente perdida. Esse será o fim de milhões de pessoas que aí estão na Terra? 

Dê ajuda, eu lhes imploro. E nós aqui não podemos nos ajudar. Não! Porque nós não conseguimos nos enxergar e ouvir a nada. Nem sentir. E eu sei que não estou sozinho. Concluo isso, pois não sou o único pecador da Terra, nem serei o último. Há muito a ser feito ainda para que as coisas melhorem. Eu sei que não estou só. Sei que isto daqui está abarrotado de "mortos-mortos", ou seja, mortos que não têm mais jeito, mesmo pós sua morte. Não há mais como eu morrer, como eu ter um fim, ainda continuo aqui, pulsando, pensando, emitindo, vibrando, porém, eternamente sozinho. Portanto, repito: dependemos de vocês e vocês dependerão de seus próximos, no futuro. Orem por nós.

Uma eterna gratidão de um ser sem luz e sem ninguém e sem nem a si mesmo para poder seguir em frente. Quero muito sair daqui orem por mim.

Castro.

Eternamente...

Olha meu jovem,

Um belo dia a idade “me pegou”. Havia chegado o tão esperado e pavoroso momento. Pavoroso, porque, ninguém trata esse assunto com esperança ou positividade. Já eu, não vejo-o desta forma. Então, eu estava bem, era um dia qualquer na terra onde pulsa os corações - e me levantei da cama. A alvorada estava despontando e me direcionei ao meu acalentador quintal, com meu pequeno e colorido jardim. Onde os pássaros voam baixo e onde minhas galinhas convivem conosco em seus espaços. 

Vinha por aí, então, uma manhã tranquila e fresca. Começou a sair um belo Sol onde tudo brilhava ao ser tocado por ele. Já sentado na minha cadeirinha, no meu quintal dos fundos de casa, eu apreciava minha pequena horta, as aves e o amanhecer; minhas pequenas árvores, que eu e minha mulher plantamos; as galinhas já cochichando, o meu cãozinho estava quieto me olhando abanando o rabo querendo brincar; tudo estava tão quieto: pássaros já ensaiavam as primeiras notas de seus cantos… Pois bem, tudo rotineiro, porém, tão sublime!

Minha mulher dormia no quarto. Meu filho e netos moravam em outra cidade. Nesse lar, somente eu e minha mulher o cão e as galinhas. Mas então… Eu me sentia tão bem, tão leve, tão feliz que… Um vazio me veio de surpresa. Não um vazio deprimente, algo solitário, angustiante, não! Mas um vazio sereno, pleno. Nada me enchia mais e nada mais, também, havia de me preencher. Sem ansiedade, sem preocupação, sem depressão, nada! Aliás eu nunca havia sentido essas “doenças” modernas, que esteja bem claro. Então, naquele momento, no meu pequeno quintal, eu simplesmente era eu. Pleno!

Pois bem, nessa hora, parecia o Sol ter se aproximado um pouco para me desejar ”bom dia”. Não pelo calor, que a essas alturas derreteria tudo, mas pela luz imensamente forte que se fez ao meu redor cobrindo toda a casa - pelo menos até onde pude ver. Flores caiam sobre mim, chovia pétalas, folhas; que coisa mais linda!; os pássaros cantarolavam ao meu redor. Eu, praticamente, levitava: tinha a disposição de um jovem atleta; a felicidade de uma mãe na formatura de seu filho; a serenidade de um monge budista... Tudo isso somava-se a mim. Aquelas dores chatas, que vêm com a idade? Realmente foram-se embora. 

O que mais eu poderia achar? Pronto, morri! E fiquei procurando meu corpo pelo chão do meu quintal. E nada. Mas era tanta luz ao meu redor, que, mesmo que eu quisesse, nunca ia achá-lo. Eu só via as flores, as árvores, alguns pássaros, insetos voando, aqui, acolá, enfim a vida, a beleza da vida. E eu falei comigo mesmo: ”a morte traz essa felicidade toda? Essa leveza, o Sol bem pertinho? Não, não creio. Deve ser delírio, ou algum sonho muito intenso. Deve ser a idade, ou alguma droga que tomei sem saber”.

Olhei para cima e vi o céu bem mais azulado que de costume. Enquanto que o verde, a mata, a grama, as flores, sob mim, reluziam! Elas emanavam algo como se fossem uma espessa fumaça cintilante - ainda pensei: “será que fez frio nesta madrugada, o sereno... A ponto destas folhas degelarem tanto assim com o calor da manhã?”

Meu caro, tudo onde eu olhava, parecia o “Mundo encantado da Disney”. Eu não sabia o que pensar de tudo o que se passava realmente. Contudo, retornei para dentro de casa para descansar. Achando ser alguma fraqueza, ou alguma coisa da cabeça já cansada, de quase um século de vida.

Passei pela varandinha, entrei na cozinha. Meus passos estavam leves e ariscos. Havia uma disposição, que… Eu parecia ter pulmões de quando eu tinha dez anos de idade - só que a julgar minha idade, as coisas já não eram bem assim. Mas por um momento, eu estava sem peso nenhum. Com uma alegria plena que, há muito não havia sentindo.  De fato, foi notório. Eu sempre fui feliz. Ora uma dor aqui, ora uma tristeza ali… O ser humano não está livre de mazelas, decerto. Há sofrimentos. Mas há graus nesses sofrimentos. E quem manipula estes graus, somos nós mesmos. Sempre mantive um controle. Mas desta vez, a felicidade foi arrebatadora.

Então, adentrando-me em meu lar, com meus caminhos sempre iluminados por uma luz inexplicável, o Sol lá de fora já não penetrava tanto assim. Assim sendo, eu avançava para meus aposentos; minha humilde casa, parecia estar envolta a um grande e brilhoso diamante; os móveis, objetos, tudo, pareciam de ouro também. Até que, para minha surpresa, eu entro no quarto e me flagro lá, dormindo ao lado de minha mulher. Oh, minha velha guerreira, companheira, cúmplice, amor da minha vida. Fiquei confuso nos primeiros minutos, mas logo compreendi. Realmente: "chegou a minha hora!". Eu tinha desencarnado e pela minha aparência, havia sido há algumas horas, bem antes de amanhecer, quiçá a noite logo assim que me deitei. Fiquei ali, me despedindo de minha mulher e de meu corpo afinal… Foram 89 anos... Agora ele dormia, meu corpo estava dormindo sim, para a eternidade. Mas eu, a minha consciência, o meu caminho, o “eu”, permaneço mais vivo do que qualquer ser vivente na Terra.

O amor à minha mulher não me prendeu. Pois eu já sabia que, logo, logo, iríamos nos reencontrar, em outra situação e possivelmente com outros corpos, não físicos, e que ela ia aceitar minha partida primeiro sem nenhuma dor. Nem meu filho me preocupou, nem meus netos, amigos e etc. A dor que meu filho irá sentir com minha perda, eu também senti com a de meu pai. E sei que ele é forte e superará a tudo. E em relação a estes tipos de dores, de perdas, o tempo cura. Meu filho está criado, bem sucedido, e tenho orgulho dele. Vive com uma mulher maravilhosa. Assim como meu netinho ainda na tenra inocência das primeiras idades.

Nada me prendeu à Terra. Até meu cãozinho, consegui deixá-lo, sem apego, sem saudades. Amigo companheiro de todo instante. Onde eu ia, ele surgia logo atrás, mesmo depois de morto. Tadinho, ele ainda me vê! Mas tenho de partir...

Na verdade sei que não deixei ninguém, nem sequer, minha mulher, filho, neto. Não deixamos nada para trás, não é bem assim. Não dá para esquecer as coisas, como se fossem algo descartáveis. Tudo trago comigo, tenho todos comigo. Foram longos anos vivenciando um ao outro, amando, sendo amados. E hoje, já não sinto mais saudades, a qual faz sofrer, por que sei que um dia retornaremos; um dia estaremos juntos e a vida voltará, a felicidade transbordará, querendo ou não. E tudo passa tão rápido… Logo estaremos de volta. Seja como e onde for, é muito injusto que nossos caminhos não se cruzem novamente. Crê. Nada é linear, é tudo um cíclo, a vida, o tempo, alegrias e tristezas. Sim, elas retornam. Contudo, conforme já expus, cabe-nos manipularmos esses sentimentos e tornarmos a vida mais fácil.

Então eu não irei para o além com nada em mim. Irei vazio. Um sublime vazio; não deixarei ninguém. Não! Não estou sendo frio e insensível. Pelo contrário. Estou certo de mim e o que digo é apenas um “até mais tarde”. Muito menos lamento perdas materiais, nem nada do tipo. Enquanto houver Sol, haverá vidas. E vidas vão e vêm. Passam, demoram. Vão e voltam, mas elas marcam. A marcas ficam, e as nossas vidas se esbarram por aí nesse complexo mundo. As “marcas” que ficam, se atraem, se reconectam, e mais importante: se reconhecem. Com isso desfaz-se toda a complexidade. Basta estar conectado àquele que lhe toca o âmago, o coração, aquela pessoa que faz teu coração feliz, tua alma plena e verás. Neste momento pense: "este sentimento vem de longas datas!" 

O Sol, o mesmo que brilhou pra mim, sempre nos refletem, uns aos outros, e transforma-nos em uma imensa família, um todo. Onde todos nós somos os filhos do mesmo Criador, onde todos nós, como num ciclo, estamos sempre nos encontrando, sempre revivendo os melhores dias das nossas vidas marcados para sempre. Somos todos brilhos do mesmo Sol, filhos do mesmo Pai; seres habitantes da Mesma Mãe, filhos da Mãe Terra. Somos todos um só, e todos nós somos tudo.

Até a próxima, meu grande irmão.


Carlos, um espanhol.

ATUALIZAÇÃO BETA v.5.7.0: AGORA MEUS ELETRODOMÉSTICOS SÃO PÓS-ESTRUTURALISTAS

Dizem, os pós-estruturalistas , que a linguagem constrói a realidade. Isso é ótimo, exceto nos dias em que eu preferiria que minha realidade...