A metamorfose e o perigo de se aceitar de tal maneira ou querer mudar



Imagine que, depois de um dia corrido, nada mais que a vida atual de um mero trabalhador, nada como um dia após o outro, você acorda pela manhã em sua cama e não consegue se mover direito. Logo, percebe que alguma coisa está errada consigo. Você se observa bem, olha de novo e constata que você é um inseto. Ou melhor, uma barata. Um dos insetos mais asquerosos do mundo. É isso! A partir daí você é uma barata. Então, vida que segue e vamos de Franz Kafka, A Metamorfose (1915). Essa obra tem ao menos 3 questões a serem refletidas, ou melhor, trazidas aos sprays dos inseticidas.


Primeiramente, fazendo uma analogia com algumas questões atuais - na verdade isso sempre aconteceu -, vamos tratar, nesta ficção, o que é, possivelmente, revelado de uma pessoa que está sofrendo, vamos dizer, o processo de baixa autoestima, que é intimamente ligada à dificuldade de autoaceitação, amor-próprio e a falta de autoconhecimento.


Segundo, isto pode ter duas origens: da própria pessoa, em não se aceitar como ela é intrinsecamente ou esta pessoa não está sendo aceita por grupo social, ou melhor, pelas pessoas ao seu redor, de onde ela vive.

Terceiro caso, que se segue do último exemplo acima, é o de a pessoa não ter ciência do que a abala e, com isso, incrivelmente, achar-se assim, como numa metáfora; um inseto; um ser diferente, inserido em um espaço que pode ir desde seu lar, academia, no clube, condomínio, na comunidade, no bairro, município, até no mundo inteiro, quiçá. E sobre a questão global, isso vai depender da "raça" qual estivermos tratando. Isso já foge um pouco da questão pessoal e já entra no tema mais amplo de xenofobia e racismo entre povos. Deixo claro aqui não estou negando o racismo, vamos dizer, interpessoal ou entre indivíduos, que é tão prejudicial quanto qualquer preconceito.

Infelizmente os julgamentos são pesados, graves e muito hostis. Nem todos suportam tais "apontamento de dedos", comentários irônicos, piadas, bullying e pior ainda discursos de ódio. Portanto, para quem vier a ler esta obra, ou para quem já terminou, compreende que, o caso do protagonista Gregor Samsa, pode ser esta: de uma pessoa que se acha estranha aos demais - ou o contrário; que não consegue olhar para si e encontrar semelhança no próximo. Tudo bem que ninguém é igual a ninguém, mas o contraste é tanto, que, por exemplo, o senhor Samsa é tão radical consigo mesmo que ele se vê uma barata. Ou melhor, ele é uma barata. Isso para termos noção da discrepância na auto-definição entre o olhar para si e olhar para outra pessoa. Pergunto, quantas pessoas que sofrem, que são oprimidas, que não se sentem bem consigo mesma e, porém, se aceitam, também, de uma forma desprezível, asquerosa, como uma aberração, por conta de problemas pessoais? Independente, nesse caso, de ser oriundo da ordem social ou individual. E não sou eu que estou falando isso e sim a interpretação costumaz do livro. Realmente o autor nos faz refletir e cabem também outras formas. Porém, este foi o meu olhar para a obra em si. Ademais, posso trazer outros exemplos da arte, da composição musical, em que os autores também trabalham com essa ideia de baixa autoestima, depressão, qualquer problema relacionada aceitação/ negação:

  1. "Eu me sinto estúpido e contagioso/ Aqui estamos agora, nos entretenha/ Um mulato, um albino/ Um mosquito, minha libido/ Uma negação, uma negação, uma negação, uma negação, uma negação/ Uma negação, uma negação, uma negação, uma negação" (Smells Like teen spirit - Nirvana);
  2. "Mas eu sou uma aberração/ Eu sou um esquisitão/ Que diabos estou fazendo aqui?/ Eu não pertenço a este lugar" (Creep [Aberração] - Radiohead);
  3. "Quem me dera ao menos uma vez/ Fazer com que o mundo saiba que seu nome/ Está em tudo e mesmo assim/ Ninguém lhe diz ao menos obrigado/ Quem me dera ao menos uma vez/ Como a mais bela tribo/ Dos mais belos índios/ Não ser atacado por ser inocente" (Índios - Legião Urbana).
Na letra da Legião Urbana, acima, o “estranho” são os outros. No caso, os índios. Esses que sofrem violências, ações externas, ataques e todo tipo de preconceito como “bichos que vivem no mato”. Lembrando também que a taxa de suicídio nos povos indígenas é altíssima.

Enfim, esse problema é muito sério e profundo. Pode estar acompanhando a pessoa desde a infância. Há uma questão principal e muito perigosa, por conta do que li e interpretei, que é a aceitação da pessoa a esta condição: que no caso do livro se trata, metaforicamente, de uma barata, ponto visceral de Kafka. Ele não pôde escolher melhor (?) inseto para representar a nossa repulsa ante a este bicho e sobre aquele que se julga como um ser detestável. Em contrapartida, a sociedade pratica o mesmo com certas pessoas, adoecendo-nas, deixando-nas realmente com esse entendimento. Coisa completamente errônea, o julgar, rotular... Tão surreal quanto a narrativa do autor. Que é uma obra prima, diga-se de passagem. Assim sendo, repito, nem todos os casos advêm de pressões externas. Pode haver casos em que a própria pessoa cria isso de si mesma tentando buscar algum ideal, algo em comum ao meio em que se vive, porém que é impossível de se alcançar devido às condições fisiológicas, ou em respeito a fenótipos/genótipos e, também, demais casos.

O que acharam do livro, aos que leram? Caso não o tenham feito, por favor, leiam!


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