A realidade nos sonhos

Era fim de tarde. Sr. Romeiro começou uma leitura. Não que ela fosse ruim, jamais, porém de súbito lhe bateu um sono absurdo. Aqueles incontroláveis e aprazíveis, diga-se de passagem. Quais fazem parecer que o corpo fique leve e o cérebro reduza seus pensamentos e sensações quase que a zero. Deixou seu livro cair, Romeiro - que lia nada mais, nada menos que Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis - e como numa machadada, apagou. Poucos segundos antes de pegar no sono pensou: "merda! Se eu dormir agora, vou acordar lá pela escuridão da madrugada. Quer saber, vou tentar dormir direto”. E o fez. Dormiu como a um viajante que retorna de uma desbravada aventura no mar. 

Romeiro, já nas primeiras dezenas de minutos de seu tranquilo sono, começou sua aventura. Primeiro ele aportou em Nova Iorque. Onde que no momento a cidade estava em plena agitação como de costume. Muita gente indo e vindo, trabalhadores, turistas, carros, transportes públicos, caminhões… Enfim, a megalópole nova iorquina encarnada no sonho do querido viajante. Romeiro encontrou pessoas que considerava amigos. Era uma sensação maravilhosa. Andou pelo Madison Square Garden, Central Park, entre outros pontos bacanas. Reencontrou um grande romance. Uma pessoa que ele havia esquecido, por sinal, mas que esse deparo acendeu novamente chamas vívidas, quentes, em seu coração. 

Após a agitada, porém charmosa Nova Iorque, o jovem aterrissou num lugar desértico, inóspito, coberto por areia e calor. Sim, Egito. Ao longe revelavam-se, imponentes, as três pirâmides. E em nosso tempo, já havia se passado horas, já ia noite adentro. Fora do sono de Remeiro, o relógio já marcava 22 horas. Porém, de Nova Iorque ao Egito, levou segundos, dentro do sono do jovem. O Sol do Cairo parece rachar o crânio, na verdade, mas Romeiro se via acolhido por aquele clima todo. Não fazia calor, nem frio, não havia sensação. De pronto, Romeiro foi parar dentro de uma das pirâmides. E lá vislumbrava um mundo, realmente, vivido pelos egípcios antigos. Um cenário real, vivo, uma manifestação com muita luz, tudo muito resplandecente e colorido. O jovem via-se envolto em pessoas felizes. Na cidade, tudo muito belo e organizado. Era uma festividade em louvação a deus Osíris.

Era 00 horas. Romeiro acorda. Seu corpo pesado, sono latente ainda. Seus olhos mal abriam. Pareciam estarem ancorados. O jovem virou se de lado, como uma pesada embarcação quando tomba no mar devido a tempestade, com isso sentiu-se como se a cama o amparasse, dando-lhe mais prazer e sono. Ele ainda teve tempo de refletir: “agora vou dormir direto. Até o raiar do dia. Quero sonhar mais, quero estar mais em lugares que nunca estive, ver pessoas quais talvez nunca tenha visto; quero poder criar lugares para minha estada, se isso sim é possível.” E assim o fez. No seu retorno, ainda escuro, lento e pesado, Romeiro entregou-se à mão invisível que guia àqueles que possuem vontade de sonhar. Que dormem para isso. Os verdadeiros aventureiros.

Barulhos de metais tinindo faziam; correntes e vagões iam brotando diante dos seus olhos; terra recém molhada da chuva, algumas gotas ainda caiam dos vagoẽs e dos objetos que estavam sobre o cenário ferroviário; os trilhos de trem acesos refletiam a luz da Lua. O jovem pensou: “por que não seguir esses iluminados trilhos e descobrir qual a próxima estação?” Romeiro olhou para o céu e viu as estrelas se ajeitando, se reunindo, se espalhando; notou a Lua se mudar rapidamente, mudando seu foco, posição de luz e sombras e os reflexos todos ao seu redor. Ao seu lado, o aventureiro jovem percebeu uma montanha. Seu verde era quase imperceptível, mas a luz da Lua dava o tom; do outro lado, a sua direita, havia uma campina. Alguns animais de pasto também estavam avivando o cenário. Ao olhar para o céu novamente, Romeiro - que tem nome de quem segue em romaria -, avistou o formato da guerreira Oxum. Deusa cultuada por nações africanas, por religiosos do Candomblé no Brasil, como se tivesse corrido uma lágrima de seus constelados olhos - por conta de um meteorito que passou no límpido céu -, sorriu para o jovem e lhe desejou boa caminhada.

Romeiro acordou já havia os primeiros e fracos raios de Sol em seu quarto. O clima ainda era frio, portanto o dia acabara de raiar - pensou ele. Voltou a dormir. Buscara sonhar novamente. Queria muito, o jovem, tornar a sonhar, a viver momentos fantástico que só o sonho, através de um bom sono, poderia lhe oferecer. E o fez. Dormiu. Só que quanto mais ele dormia, mais sono tinha e mais vivamente ele sonhava. Neste sonho novo, encontrou uma amiga, que, ele, na verdade, não fazia ideia enquanto fora do sonho, mas dentro dele era uma mulher qual estava apaixonado. “Meio lá, meio cá”, Romeiro forçava o sono. As vezes acordava, mas não era hora de despertar, ele sabia. Seu corpo ainda pesava, sua mente ainda pedia sonhos, cama, sono… Ele ainda pensou em levantar e acordar “na marra”. Mas foi vencido - e Isso já passava das dez da manhã. O sonho que ele começara, meio ofuscado, era sobre seu amor. Deixou a vigília em busca disso. Não se sabe se através da força do pensamento de Remeiro, se por obra do destino, ou de alguma divindade dos sonhos, ele reencontrou sua amada. 

Ela, uma bela índia, da tribo dos Tamoios. Romeiro retornara ao século dezesseis. As tribos haviam se fundindo na Confederação dos Tamoios. Esta foi uma revolta, qual uniu tribos do litoral sudeste na luta contra os colonizadores portugueses. Sua amada, uma índia jovem, chamada Botiira - que significa, em Tupi, “flor” -, estava sozinha, em fuga, na mata. Ela não queria a guerra. Ninguém queria, mas era preciso. Romeiro também se encontrava, assim como ela, na mata, aflito e índio, também. Ele queria que ela retornasse com ele, para “sua casa”. Porém ela não compreendia, porque, para ela, a casa deles era ali onde estavam, alguns poucos quilômetros de distância. De repente um zumbido, e o que era a linda imagem de Botiira, transformava-se num borrão verde. Que de verde, foi escurecendo. Até que… Olha-se um teto, um simples lustre de vidro e madeira; janela, cortinas, luz do Sol, armário e tudo de volta à tona novamente.

Apesar de seu último sonho estar fluindo, Romeiro sabia das coisas, da realidade. Por mais que tentasse fugir, ainda estava com as amarras do dia-a-dia, dos costumes, dos vícios da atual verdade, da vida de fato presa ainda em seu corpo, sua mente. Para ele, enquanto índio em seu último sonho, sua casa era agora, hoje, no mundo real qual se vive; no mundo moderno, dentro de um quarto trancado, sob um céu lúgubre, sobre um chão nefasto. Botiira não queria se aventurar nesse mundo. Ela o largara no mato. Romeiro ainda tinha reflexos, ainda tinha a sensação - quando se acaba de acordar do meio do sonho - da mata, da índia correndo por uma trilha marrom, de terra fértil, macia e, por fim, do zumbido que passou por si e o acertara. Talvez um tiro de mosquete, uma lança, uma flecha ou uma paulada mesmo. Algo tinha que “matar” o jovem para que ele retornasse ao mundo real. Ele precisava acordar, se levantar, viver.

Assim como os índios, aflitos, Romeiro lutava. Mas não contra os colonizadores e sim contra sua vigília. Ele não queria mais estar acordado. O jovem, desanimado, queria viver de sonhos de sono. Mesmo que não pudesse sonho ter, pelo menos a escuridão e o silêncio do sono profundo o agradavam de forma a preferir dormir a viver. A questão, pensava Romeiro, não era sonhar bons sonhos, mas se livrar do pesadelo que é a vida. Nos sonhos ele interagia, tinha amores, bons amigos, via e visitava lugares esplêndidos, maravilhosos, quiçá criava até um lugar para si, um mundo para se estar. Coisa qual ele se privava enquanto em vida. Romeiro pensava: “Não posso botar os pés na rua. Tudo fede, tudo me fere, tudo me desagrada. O ar pesa, o chão gruda, o céu desaba. Apesar de eu acordar cedo e olhar para o Sol, os dias são todos nebulosos, escuros como o meu sono profundo.”

Livre era Romeiro. Ele podia sim, ir e vir. Sair de casa e andar por onde ele quisesse. Porém o mundo não permitia. O mundo não permite e não provê a liberdade que tanto Romeiro quer. Esse mundo, hoje, virtualmente, é geograficamente pequeno. Cabe somente uma pessoa; sua circunferência é a de apenas uma pessoa e, infelizmente, não é Romeiro. Na verdade a Terra possui 40.075.000 metros, “de nada” - diz Romeiro. Ele não pode voar, não pode pular, nem caminhar. O mundo lhe proíbe disso. A realidade o oprime. Um metro quadrado, segundo Romeiro, cabe toda a Terra e ela o espezinha. Ele não tem espaço. Não possui nada. Não há direção para onde andar; não há espaço para que ele possa pular; não há chão qual ele possa pisar. Romeiro vive num nada. Nada por nada, melhor - acha ele -, dormir e relaxar seu corpo com sua laboriosa mente, pois, somente na escuridão e pleno silêncio é que nasce a magia, é de onde se cria um universo, de onde se pode conceber uma nova vida. 

Em seus sonhos não se respira 
não se pisa, nem flutua
Não fica são, nem se pira
Não há campos, nem rua

Nele não se fala, nem se escuta
Nada se enxerga, nada se sente
Desde astros, uma linda fruta
até grandes montanhas e gente

Seu sonho nada é e é tudo, porém
Romeiro cria o nada até para sonhar
Sonha um mundo que lhe convém
Vivendo sono sem querer acordar

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ou como se filosofa com uma agulha

Seja aqui e agora

Ontem e hoje