terça-feira, 30 de junho de 2020

O amor faz sentido?

É a luz sonora,
Tem som de sabor
Em plena hora
faz chuva descer É só tocá-lo que
o aroma se sente que o tempo, com ardor
Em meio ao inverno quente

O distraído notou
Mas nada viu
O lento acelerou
porém logo partiu

Nada fez sentido 
Do sólido amolecido
a paixão se viciou
Fez o inteiro fundido

A Terra ficou plana
A gênese retrocedeu
Perseu enfim nasceu
Medusa ganhou fama

A mente, caso pense
com a língua não fala 
A derrota que vence
nada que se cala

Sem nexo tal expor
Ouro guardado em isopor
tratado com todo zelo
Identicamente, o amor

domingo, 28 de junho de 2020

O suicídio que não mata



Pintura de 1755, o suicídio de Cleópatra.


Ouvindo “Flores”, da banda Titãs, repensei no despertar após uma vida que se foi. Apesar de não ter havido a morte do corpo físico, mas de uma vida em um momento de uma pessoa que mudou radicalmente após tantas intempéries. Lembrando que a música é uma clara menção ao suicídio, ou pelo menos sua tentativa, àquele que já chegou a este ponto.

Primeiro, a música tem como seu primeiro verso “Olhei até ficar cansado/De ver os meus olhos no espelho”. O que estaria tramando o(a) protagonista dessa história que tanto se olhava pelo espelho? O que o espelho reflete àquele que se depara com ele? O que passa na cabeça de uma pessoa, que, provavelmente está a ponto de dar fim à sua existência, olha para si, encarando-se frente à frente diante do espelho? 

Segundo, a música fala tanto de flores, o título é “Flores”, o que raio de flores são essas que estão em todos os cantos? FUNERAL? (Pergunta retórica).

E, voltando ao espelho, quando uma pessoa que está de frente a ele - respondendo a uma das perguntas acima - não estaria ela vendo flores, ao invés de si mesmo? Uma vez que as flores estão em todos os lugares?

“Chorei por ter despedaçado/ As flores que estão no canteiro”; Eis aqui, talvez, uma clara referência ao “bem-me-quer, mal-me-quer” - quem nunca fez essa brincadeira quando na infância? (risos). Mas nesta obra, não se trata de brincadeira. E, retornando, à música, “as flores que estão no canteiro”, despedaçadas, foi, realmente, um ato de “bem-me-quer, mal-me-quer”? Essa flor, não poderia simbolizar alguma pessoa amada? Não que se trate de violência física contra o próximo, mas uma dilaceração, um despedaçar, rasgar, arrancar simbolicamente, metaforicamente. 

Uma flor presenteada por algum amado(a), faz lembrar a todo instante deste. Poderia ter, o protagonista, jogado o vaso com as flores, com tudo no chão, devido a alguma frustração, um amor não correspondido? Quem sabe? Uma separação indesejada, uma traição… Tudo isso pode vir a ser o desfecho dos versos abaixo:

“Os punhos e os pulsos cortados/ E o resto do meu corpo inteiro”. A partir daqui começo outra interpretação: é claro e notório o modus operandi de uma suicida ou uma pessoa com impulsos auto-destrutivos. Não só os pulsos, mas o corpo inteiro do(a) protagonista está dilacerado. Talvez como as flores que estão no canteiro. Tais flores podem ser o(a) próprio suicida ou a pessoa amada. Como o(a) suicida, não cometeu o ato de fato, foi apenas uma intenção, pode-se estar se referindo a si mesmo, a essa flor que, de plástico, não morre. Como se estivesse pensando: “eu não consigo me matar”; ou, esse trecho pode ser direcionado a uma pessoa amada, que o(a) deixou de alguma forma e que, também não morre: fica impregnada na mente do(a) protagonista. Como se não conseguisse esquecê-la(o). Não à toa “Há flores cobrindo o telhado/ E embaixo do meu travesseiro/ Há flores por todos os lados/ Há flores em tudo que eu vejo”.

Entretanto, tem uma outra versão, ou melhor, outra “visão” para ouvir essa música: O protagonista por alguma causa tentou suicídio, não conseguiu, foi socorrido e encontra-se no hospital, explícito nesse trecho “A dor vai curar essas lástimas/ O soro tem gosto de lágrimas/ As flores têm cheiro de morte/ A dor vai fechar esses cortes”. É um pouco sombrio, quase beirando um velório, algo bem fúnebre. Mas não há brechas na música sobre uma possível morte física, de fato. O que pode ter “morrido”, rompido, findado, foi algum relacionamento ou uma potência de vida (vontade de viver) com o desgosto para a mesma, mas que não se consumou de fato, porque, as “Flores/ Flores/ As flores de plástico não morrem”. Mas em respeito ao tratamento, à medicação, o soro, sob os cuidados médicos, me lembrou drogas. Não que os medicamentos estivessem causando alucinações no paciente. Mas as próprias drogas ilícitas. Tudo - pode-se interpretar assim, creio - esteja voltado para um consumo excessivo de alucinógenos. Visão de flores em todos os lugares, desintoxicação no hospital, as dores no corpo (na alma, quiçá), tentativa de suicídio, o corpo dilacerado, alucinado no chão, despedaçado, junto com um lindo vaso de lindas flores que enfeitam o banheiro, sobre a pia, debaixo de um lindo espelho…

Por fim, as flores não morrem, o pensamento não morre, o desejo, a paixão - apesar de não correspondida - o desejo do adicto em se alimentar ilicitamente ou quiçá uma dor “da alma”, e seja lá mais o que ficar a ponto de interpretação nessa obra. E, por acaso, superando a isso tudo, como recomeçar? O que fazer para a vida não ser tão plástica e falsa, como são as flores de plástico, mas sim torná-la viva como um lindo ramo de flores coloridas, que saltam aos olhos e, perfumadas, alteram para melhor todos os sentidos do corpo? E você, o que achou dessa música? O que, para ti, representa essas Flores na composição do autor?


TITÃS. Álbum: "Õ Blésq Blom". Música: "Flores", Autores: Charles Gavin, Paulo Miklos, Sérgio Britto, Tony Bellotto. 1989.

sábado, 27 de junho de 2020

A liberdade. Somos livres mesmo? - Jean-Paul Sartre


Vou tentar ser breve no conceito filosófico de Jean-Paul Sartre, francês (1905 - 1980). Filósofo da corrente Existencialista, mas existencialismo ateu. Lembrando que para o filósofo francês, a existência de Deus, ou divindades não é ponto focal para sua filosofia. Sartre fala sobre a Liberdade. Seu pilar filosófico, naturalmente. A liberdade pertence a essência do humano, lhe é intrínseca. Não só somos livres, contudo, estamos condenados a isso. Condenados a sermos livres. Mas não é uma liberdade no senso-comum; não é essa a qual temos ciência, como de costume. Ou seja, fazer tudo o que der na telha quando as oportunidades nos batem à porta. Não é bem isso. 

Todavia, existem outras definições: liberdade é você não ser servo da sua mente, inclusive da vontade desenfreada de ser livre. Ou melhor, segundo Kant, liberdade é você sobrepor a razão às pulsões, não se tornando refém delas. Entretanto, outro caso, não podemos nos tornar refém da razão em detrimento das pulsões - assim falava Nietzsche, contrapondo-se ao iluminista. Maquiavel definia a liberdade como ser fiel ao seu próprio Estado; para Etienne La Boétie, era simplesmente não servir, nada fazer ante a um governante, um tirano ou a quem quisesse lhe extinguir a liberdade ou pleno direito a escolhas por si só. 

Mais um pouco sobre esse tema, temos uma alegoria e um fato: Primeiramente, o carcereiro e o preso, tanto um quanto o outro, estão condenados. Quiçá o carcereiro mais ainda que o preso, pois que o preso pode estar se sentindo mais livre do que muitos imaginam. Segundo, o genial, astrofísico Stephen Hawking, uma vez disse num documentário - desses de TV à cabo -, qual ele fazia parte: “Apesar de eu estar preso a esta cadeira e não mover nenhum músculo, minha mente é completamente livre e alcança os confins do universo.”

Tendo uma ideia já do que somos e podemos, na perspectiva de Sartre, podemos partir para uma próxima premissa: a escolha. Toda liberdade se submete à escolha - paradoxal essa submissão, totalmente avessa à liberdade. Então, ainda assim, por mais que não queiramos a nada escolher, ainda assim estamos fazendo uma escolha. Estamos condenados a isso. “Condenados a ser livres” - diz Sartre. Contudo, a partir desse ponto é que surgem alguns problemas, porque, escolhas requerem descartes, negações, deliberações e em paralelo a isso, responsabilidades Somos humanos, não advindo de nenhuma divindade, bastamo-nos por nós mesmos. Somos autossuficientes e responsáveis e somos a consequência das nossas escolhas.

É verdade, somos humanos. Sofremos - a morte e o sofrimento são os queridinhos da Filosofia, diga-se de passagem. Nossas escolhas geram angústias, crise. Não há como fugir disso: devemos escolher. E escolher é responsabilidade. Escolher é renunciar, é deixar algo. Isso nos custa e machuca muito. Imagina a gama de coisas que renunciamos durante o nosso dia-a-dia e, dentre essas, devemos optar por somente uma? O quanto de coisas descartamos, não é? E fica aquela reflexão: será que fiz a escolha certa? Isso veremos mais adiante*. A partir daí temos duas situações: Optarmos por algo, porém com certas angústias e futuras responsabilidades ou delegamos aos outros a escolherem por nós. Primeiro que, ao se escolher algo, da mesma forma os outros também o fazem. Daí há um choque de interesses, conflitos. Por exemplo, todos anseiam ao mesmo fim, ou a um idêntico desejo, ou objeto... Isso não é sadio. Acaba que um torna o outro como um inferno em suas vidas. Eis a famosa frase “o inferno são os outro”. E, em segundo lugar, todos nós nos burlamos. Com isso solicitamos ou deixamos que o próximo faça escolhas por nós - devido a conta das nossas angústias por tanto rejeitar opções -, jogando a própria sorte aos riscos de uma pessoa escolher errado por nós. E por que mais esse “sofrimento”? Porque aquele que não vive minha existência, minhas dores, minhas vontades, minha existência, não pode fazer uma perfeita escolha por mim. Para que haja liberdade devemos ter o poder da escolha; para a escolha, somente o indivíduo, sua deliberação, sua vontade intrínseca.

Sobre a escolha certa*: a alusão ao "preso e o carcerário" que Sartre tenta nos passar a ideia de liberdade: o preso reflete: "o carcereiro está tão preso quanto eu. Uma grade, dois homens. Quiçá eu ainda sou mais livre do que ele". (Isto não se encontra escrito exatamente em Sartre [risos]). Sim, na verdade, a prisão ou a privação não está remetida somente ao corpo ou ao espaço físico, mas ao ato de pensar, se pronunciar, de ser/ estar. Ninguém pode nos impedir de pensar, de refletir, de desejar, sonhar e etc. Isso é liberdade para Sartre. Então, essa noção de liberdade é o estado de consciência, de uma escolha assertiva e, a partir disso, viver bem com ela. Esse movimento é um processo intrínseco que só o indivíduo pode passar, pode saber. Entretanto, lembrando que a liberdade é um fardo, gera responsabilidades. 

Por fim, existe alguns entraves, alguns percalços externos que supõe-se atrapalhar nossa caminhada, nossa liberdade. Saiba que nada disso é impedimento. Nenhuma ação é impedida. Vide a alegoria do preso e o carcereiro, a vida de Stephen Hawking? Algo nesse mundo os impedia de escolher? De serem livres? Uma pessoa cega, por exemplo, tem privação de sua liberdade? Não enxergar o mundo não a faz completamente inútil. Esta pessoa ainda exerce plenamente suas faculdades, que lhe são inatas: os outros sentidos. Ela pode estudar braile, música, dança, trabalhar com as mãos, utilizar todo seu potencial intelectual e etc. Esses conceitos de Jean-Paul Sartre não são para reforçar e justificar àqueles que carecem de necessidades básicas. Pelo contrário! A liberdade não se afrouxa ante a necessidade, ela se relaciona. Seja de um cego, seja de um paraplégico. O conceito de liberdade, nesse caso de necessidade, não diz respeito àquilo que se precisa, mas àquilo que não pode ser diferente do que é. Uma pessoa pobre, talvez de uma favela, está privada, completamente, de fazer suas escolhas, de ser livre? (Cabe reflexão). Porém são nesses casos que a liberdade, segundo Sartre, torna-se um potencial para o indivíduo. Para o filósofo francês, isso é engajamento, é a autonomia da pessoa posta à prova diante de si; de livrar-se daquilo que ela não controla; de transformar-se, aliada à liberdade, ao poder de escolhas. Sempre haverá uma escolha, se intrínseca, se assertiva, haverá sucesso. Afinal, somos livres. Condenados a ser livres, não é? Portanto, é aproveitar sabiamente.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

É preciso ser inteligente

DA MESMA FORMA QUE É EXIGIDA CERTA CAPACIDADE MENTAL PARA SE ENTENDER UM INTELIGENTE, ESTA CAPACIDADE É TAMBÉM EXIGIDA PARA SE ENTENDER UM ESTÚPIDO. ESPERO QUE ME ENTENDAM.

A realidade nos sonhos

Era fim de tarde. Sr. Romeiro começou uma leitura. Não que ela fosse ruim, jamais, porém de súbito lhe bateu um sono absurdo. Aqueles incontroláveis e aprazíveis, diga-se de passagem. Quais fazem parecer que o corpo fique leve e o cérebro reduza seus pensamentos e sensações quase que a zero. Deixou seu livro cair, Romeiro - que lia nada mais, nada menos que Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis - e como numa machadada, apagou. Poucos segundos antes de pegar no sono pensou: "merda! Se eu dormir agora, vou acordar lá pela escuridão da madrugada. Quer saber, vou tentar dormir direto”. E o fez. Dormiu como a um viajante que retorna de uma desbravada aventura no mar. 

Romeiro, já nas primeiras dezenas de minutos de seu tranquilo sono, começou sua aventura. Primeiro ele aportou em Nova Iorque. Onde que no momento a cidade estava em plena agitação como de costume. Muita gente indo e vindo, trabalhadores, turistas, carros, transportes públicos, caminhões… Enfim, a megalópole nova iorquina encarnada no sonho do querido viajante. Romeiro encontrou pessoas que considerava amigos. Era uma sensação maravilhosa. Andou pelo Madison Square Garden, Central Park, entre outros pontos bacanas. Reencontrou um grande romance. Uma pessoa que ele havia esquecido, por sinal, mas que esse deparo acendeu novamente chamas vívidas, quentes, em seu coração. 

Após a agitada, porém charmosa Nova Iorque, o jovem aterrissou num lugar desértico, inóspito, coberto por areia e calor. Sim, Egito. Ao longe revelavam-se, imponentes, as três pirâmides. E em nosso tempo, já havia se passado horas, já ia noite adentro. Fora do sono de Remeiro, o relógio já marcava 22 horas. Porém, de Nova Iorque ao Egito, levou segundos, dentro do sono do jovem. O Sol do Cairo parece rachar o crânio, na verdade, mas Romeiro se via acolhido por aquele clima todo. Não fazia calor, nem frio, não havia sensação. De pronto, Romeiro foi parar dentro de uma das pirâmides. E lá vislumbrava um mundo, realmente, vivido pelos egípcios antigos. Um cenário real, vivo, uma manifestação com muita luz, tudo muito resplandecente e colorido. O jovem via-se envolto em pessoas felizes. Na cidade, tudo muito belo e organizado. Era uma festividade em louvação a deus Osíris.

Era 00 horas. Romeiro acorda. Seu corpo pesado, sono latente ainda. Seus olhos mal abriam. Pareciam estarem ancorados. O jovem virou se de lado, como uma pesada embarcação quando tomba no mar devido a tempestade, com isso sentiu-se como se a cama o amparasse, dando-lhe mais prazer e sono. Ele ainda teve tempo de refletir: “agora vou dormir direto. Até o raiar do dia. Quero sonhar mais, quero estar mais em lugares que nunca estive, ver pessoas quais talvez nunca tenha visto; quero poder criar lugares para minha estada, se isso sim é possível.” E assim o fez. No seu retorno, ainda escuro, lento e pesado, Romeiro entregou-se à mão invisível que guia àqueles que possuem vontade de sonhar. Que dormem para isso. Os verdadeiros aventureiros.

Barulhos de metais tinindo faziam; correntes e vagões iam brotando diante dos seus olhos; terra recém molhada da chuva, algumas gotas ainda caiam dos vagoẽs e dos objetos que estavam sobre o cenário ferroviário; os trilhos de trem acesos refletiam a luz da Lua. O jovem pensou: “por que não seguir esses iluminados trilhos e descobrir qual a próxima estação?” Romeiro olhou para o céu e viu as estrelas se ajeitando, se reunindo, se espalhando; notou a Lua se mudar rapidamente, mudando seu foco, posição de luz e sombras e os reflexos todos ao seu redor. Ao seu lado, o aventureiro jovem percebeu uma montanha. Seu verde era quase imperceptível, mas a luz da Lua dava o tom; do outro lado, a sua direita, havia uma campina. Alguns animais de pasto também estavam avivando o cenário. Ao olhar para o céu novamente, Romeiro - que tem nome de quem segue em romaria -, avistou o formato da guerreira Oxum. Deusa cultuada por nações africanas, por religiosos do Candomblé no Brasil, como se tivesse corrido uma lágrima de seus constelados olhos - por conta de um meteorito que passou no límpido céu -, sorriu para o jovem e lhe desejou boa caminhada.

Romeiro acordou já havia os primeiros e fracos raios de Sol em seu quarto. O clima ainda era frio, portanto o dia acabara de raiar - pensou ele. Voltou a dormir. Buscara sonhar novamente. Queria muito, o jovem, tornar a sonhar, a viver momentos fantástico que só o sonho, através de um bom sono, poderia lhe oferecer. E o fez. Dormiu. Só que quanto mais ele dormia, mais sono tinha e mais vivamente ele sonhava. Neste sonho novo, encontrou uma amiga, que, ele, na verdade, não fazia ideia enquanto fora do sonho, mas dentro dele era uma mulher qual estava apaixonado. “Meio lá, meio cá”, Romeiro forçava o sono. As vezes acordava, mas não era hora de despertar, ele sabia. Seu corpo ainda pesava, sua mente ainda pedia sonhos, cama, sono… Ele ainda pensou em levantar e acordar “na marra”. Mas foi vencido - e Isso já passava das dez da manhã. O sonho que ele começara, meio ofuscado, era sobre seu amor. Deixou a vigília em busca disso. Não se sabe se através da força do pensamento de Remeiro, se por obra do destino, ou de alguma divindade dos sonhos, ele reencontrou sua amada. 

Ela, uma bela índia, da tribo dos Tamoios. Romeiro retornara ao século dezesseis. As tribos haviam se fundindo na Confederação dos Tamoios. Esta foi uma revolta, qual uniu tribos do litoral sudeste na luta contra os colonizadores portugueses. Sua amada, uma índia jovem, chamada Botiira - que significa, em Tupi, “flor” -, estava sozinha, em fuga, na mata. Ela não queria a guerra. Ninguém queria, mas era preciso. Romeiro também se encontrava, assim como ela, na mata, aflito e índio, também. Ele queria que ela retornasse com ele, para “sua casa”. Porém ela não compreendia, porque, para ela, a casa deles era ali onde estavam, alguns poucos quilômetros de distância. De repente um zumbido, e o que era a linda imagem de Botiira, transformava-se num borrão verde. Que de verde, foi escurecendo. Até que… Olha-se um teto, um simples lustre de vidro e madeira; janela, cortinas, luz do Sol, armário e tudo de volta à tona novamente.

Apesar de seu último sonho estar fluindo, Romeiro sabia das coisas, da realidade. Por mais que tentasse fugir, ainda estava com as amarras do dia-a-dia, dos costumes, dos vícios da atual verdade, da vida de fato presa ainda em seu corpo, sua mente. Para ele, enquanto índio em seu último sonho, sua casa era agora, hoje, no mundo real qual se vive; no mundo moderno, dentro de um quarto trancado, sob um céu lúgubre, sobre um chão nefasto. Botiira não queria se aventurar nesse mundo. Ela o largara no mato. Romeiro ainda tinha reflexos, ainda tinha a sensação - quando se acaba de acordar do meio do sonho - da mata, da índia correndo por uma trilha marrom, de terra fértil, macia e, por fim, do zumbido que passou por si e o acertara. Talvez um tiro de mosquete, uma lança, uma flecha ou uma paulada mesmo. Algo tinha que “matar” o jovem para que ele retornasse ao mundo real. Ele precisava acordar, se levantar, viver.

Assim como os índios, aflitos, Romeiro lutava. Mas não contra os colonizadores e sim contra sua vigília. Ele não queria mais estar acordado. O jovem, desanimado, queria viver de sonhos de sono. Mesmo que não pudesse sonho ter, pelo menos a escuridão e o silêncio do sono profundo o agradavam de forma a preferir dormir a viver. A questão, pensava Romeiro, não era sonhar bons sonhos, mas se livrar do pesadelo que é a vida. Nos sonhos ele interagia, tinha amores, bons amigos, via e visitava lugares esplêndidos, maravilhosos, quiçá criava até um lugar para si, um mundo para se estar. Coisa qual ele se privava enquanto em vida. Romeiro pensava: “Não posso botar os pés na rua. Tudo fede, tudo me fere, tudo me desagrada. O ar pesa, o chão gruda, o céu desaba. Apesar de eu acordar cedo e olhar para o Sol, os dias são todos nebulosos, escuros como o meu sono profundo.”

Livre era Romeiro. Ele podia sim, ir e vir. Sair de casa e andar por onde ele quisesse. Porém o mundo não permitia. O mundo não permite e não provê a liberdade que tanto Romeiro quer. Esse mundo, hoje, virtualmente, é geograficamente pequeno. Cabe somente uma pessoa; sua circunferência é a de apenas uma pessoa e, infelizmente, não é Romeiro. Na verdade a Terra possui 40.075.000 metros, “de nada” - diz Romeiro. Ele não pode voar, não pode pular, nem caminhar. O mundo lhe proíbe disso. A realidade o oprime. Um metro quadrado, segundo Romeiro, cabe toda a Terra e ela o espezinha. Ele não tem espaço. Não possui nada. Não há direção para onde andar; não há espaço para que ele possa pular; não há chão qual ele possa pisar. Romeiro vive num nada. Nada por nada, melhor - acha ele -, dormir e relaxar seu corpo com sua laboriosa mente, pois, somente na escuridão e pleno silêncio é que nasce a magia, é de onde se cria um universo, de onde se pode conceber uma nova vida. 

Em seus sonhos não se respira 
não se pisa, nem flutua
Não fica são, nem se pira
Não há campos, nem rua

Nele não se fala, nem se escuta
Nada se enxerga, nada se sente
Desde astros, uma linda fruta
até grandes montanhas e gente

Seu sonho nada é e é tudo, porém
Romeiro cria o nada até para sonhar
Sonha um mundo que lhe convém
Vivendo sono sem querer acordar

Apolítica

Um ato de violência política não revela apenas um crime de uma ação isolada. Ele expõe a fragilidade de nossas crenças políticas. Depois dos...