Porre Nº 5 (acho que perdi a conta)

HOJE cedo saí de casa, atravessei a rua e fui comprar pão. Fi-lo rapidamente. Contudo, ao chegar em casa esquentei a água, pus a mesa e vi que não tinha manteiga e nem café (apesar de eu odiar café. E, também, cá entre nós: comer pão sem manteiga é pior do que sexo com bonecas infláveis). Então voltei à padaria para comprar o que faltava para o meu café da manhã. 

Estava saindo pão fresquinho e fui tentado a comprar mais. Percebi que a fila do pão estava enorme. Nela estavam: uma barriga, com bastante tecido adiposo; uma salsicha, tomando guaravita; muitas crianças, parecia dia de São Cosme e Damião; um playboy, que se sentia na fila da entrada vip da boate. E, por fim, o próprio dono da padaria. Isso não é uma imensa fila, mas a quantidade de criança era desesperadora. 

Comecei a ficar impaciente, pois o tempo passava e o meu sagrado café tardava em sair. A barriga perguntou aos berros quem ia servir o pão, pois via-se que não tinha nenhum atendente na padaria. O padeiro, obviamente, estava aparvalhado fazendo mais pão dentro da cozinha. Era notório que ele só fazia isso na vida. E a padaria tinha vários prêmios de "pão fresquinho na hora" e exibia com orgulho os troféus por toda a parede. A salsicha, entediada, pediu mais guaravita a um quadro que estampava a foto do funcionário do mês - que na verdade era do próprio dono. Este era o último da fila e não largava sua mala de viagem. Os mais chegados diziam: "Todo dia o dono da padaria sai rumo ao exterior. Parte numa viagem que parece ser longa, mas nunca que acontece de fato. Sempre surge um imprevisto, um intempérie. Então, para não ficar fazendo e desfazendo suas malas todos os dias, ele deixou a mesma pronta e a carrega para cima e para baixo".

Até que, do nada... "Pronto! vai sair o pão" - pensamos coletivamente. De dentro da padaria, lá onde ficavam os fornos, vinha um cachorro, imitando uma Cacatua. Vinha anunciando que o pão ia sair e perguntava quem era o primeiro da fila. A salsicha entrou por dentro da barriga e, de uma metamorfose heróica, surgiu um grande rosto sem barba, vermelho de raiva, com formato de empadão fatiado. Inclusive seu aroma estava me fazendo salivar. Sem contar os pães sendo servidos por um cachorro - um lindo lavrador do sul de Santa Catarina. 

Despejados todos os pães na sexta - que já era noite - o playboy se empolgou. Não por causa disso ficamos felizes. Mas a sexta era enorme e couberam uns 200 pães. "Enfim… - pensamos - Vamos comprar nossos pães". E eis que o tal playboy pegou o seu pão e saiu gritando: "Eu não vou passar manteiga! Nem requeijão... E sabe por quê? - questionou a si mesmo - porque meu filho tem kit gay!". "E isso inclui mamadeira de piroca?" - indaguei-o. "Não, só chupeta. Você quer?" - me ofereceu o jovem. "Perceba que tem duzentas crianças nesta padaria. Então, por favor, paremos. Por conta de todos os sentidos que possam ser interpretados aqui…" - propus.

Enquanto o playboy se dirigia para o caixa, que em letras garrafais, estampava "Cuidado, frágil!" - e ainda estava lacrado ainda com fita adesiva dos Correios - a horda mirim o seguiu. Cada criança com seu pão. Pensei: "Fudeu! Acabaram-se os pães!". Realmente havia acabado. O cachorro, que trouxe os pães e os colocou na sexta, saiu correndo porque já estava atrasado. Dizia ele (ou latia, você que escolhe): "Cacete, au, au! Já é à segunda feira que irei hoje. Não aguento mais! Estou com pressa. Fui! Au, au..." Enquanto o cão saia, justamente, após ter batido seu ponto, uma gata assumiu a panificação. 

Entre assobios e elogios, ela ia vagarosamente, elegantemente, dócil, para dentro da padaria fazer seu trabalho. Alguns ratos saíram em disparada lá de dentro e foram em direção à rua em busca de melhor abrigo. Um deles dizia enquanto fugia: "A patroa chegou!". "Mas ela é uma gata heim!" - dizia outro. A fila permanecia com a mesma configuração. Exceto pela saída do playboy. Mas estavam, ainda, as duzentas crianças - querendo mais um pão cada uma; o empadão fatiado - que retornou à forma anterior, de barriga e salsicha, já separados - eu; mais o dono da padaria (com sua mala é óbvio).

Nesse momento, depois de três rodadas de duzentos pães servidos, a fila vagarosamente andou. Só que para trás. Portanto eu passei a ser o segundo na espera. O padeiro, que ficou sendo o primeiro, nobremente, me cedeu seu lugar: "Não como pão - disse ele, meio que pra si mesmo, olhando cabisbaixo, estranhamente - Mas prefiro pão…" Sem entender muito, enfim, consegui meu pão. Um apenas. Era um pão por CPF. 

(E você se pergunta: "E como as crianças conseguiram?". Lhe respondo: "Com seus CPFs, oras!". Daí você insiste: "Mas é só um pão por CPF, não? Como elas conseguiram dois pães cada uma?" "Sim - retruco-te - eles possuíam os CPF's dos seus personagens prediletos e o dono da padaria aceitava CPF de terceiros, desde que estivessem ausentes).

Até que, enfim… Quando eu estava indo embora, todos olharam e, em uníssono, disseram: "Olha! está chovendo. Que tempo doido, não falei?" Logo, quando eu botei o pé fora da padaria a chuva cessou. Não porque eu botei o pé na rua, mas creio que por falta d'água mesmo ou, talvez, racionamento por parte da natureza. Contudo, novamente, todo mundo em uníssono, (ou para os mais chegados "em uma só voz") ao virem o fenômeno disseram: "Olha a chuva parou! Tempo doido, não falei?" Percebi que quem fazia chover, ou parar de chover, eram aquelas vozes entoadas de uma só vez e não minha vontade de ir para casa ou ficar dentro da padaria.

Sendo assim, protegi meu pão e arrisquei sair novamente. Para mim, era só atravessar a rua que eu estaria em casa. Entretanto, eis que um carro pára na minha frente e me oferece uma carona. Eu avisei que não precisava, pois era só atravessar a rua. Mas quando olhei bem para dentro do carro e vi quem era, aceitei o convite imediatamente. Franz Kafta. O próprio. O livro! Não a biografia, mas a metamorfose, - quem dirigia - e no banco de trás estava a carta ao pai - qual não resisti, abri e li-la toda. Não pude entreter-me muito com a metamorfose, pois ela dirigia o veículo. 

Cheguei em casa anos depois, ou talvez algumas horas. Não sei precisar… - mas o que importa, que diferença faz, se você perde anos ou segundos para comprar pão? O que na verdade é o tempo, senão o prazer pela compra e, consequentemente, a sua mais refinada degustação? Que envolve todo o processo de ir a padaria comprá-lo, chegar em casa e comê-lo (mas com manteiga heim!). 

Então, quando eu ia começar já a lanchar, pois já era umas quatro horas da tarde, eis que surge uma chamada de vídeo, vinda do aplicativo Telegram, de Dr. Freud - com aquela mesma cara, da sua foto mais famosa que se encontra no na internet, ele me questionou: "Você tem de escolher: ou a figura materna, ou a paterna; ou você toma leite, ou café". Chamada encerrada. Refleti muito. Quando voltei-me ao celular, para respondê-lo por texto, havia uma curiosa mensagem de um hacker se passando por mim: "Estou com arquivos que não possuem lógica alguma. Estão completamente privados de qualquer lucidez e não só: As mensagens são uma afronta à razão. Posso lhe confiar?".

Aceitei, porém com desdém. E a mensagem, com data de ontem, dizia: Meu caro, não estou com a mínima vontade de escrever para você. Nem para ninguém. Isto aqui, na verdade, é uma simplória introdução. É mais para dizer que a fiz. Porque minha vontade mesmo era mandar todo mundo ir pastar. Ficam me pressionando, oras! Que saco! Porém, se você analisar isto com cuidado, poderá lhe ser muito útil. Preste atenção! Deverás tomar uma decisão por meio da insanidade (que é positivo isso), sobre a questão que lhe foi imposta com muita seriedade, confesso. Entretanto o farás assertivamente. Veja bem, é o seguinte: Não dê ouvido à razão. Nem ao Freud. Não leia Kant e, por favor, pare de assistir Geraldo Luís, aos domingos. É notório que isso está te angustiando. Deixe-me te lembrar (sei que vou parecer mãe): Mas esqueceste-te de comprar o café e a manteiga, na padaria, lembra-te? Você só comprou um pão por conta do teu CPF. Outra coisa, por fim: Escolha café com leite e bloqueie Dr. Frued das tuas redes sociais e app de conversas. E se quiser afrontá-lo de verdade, escolha capuccino. Ah, mais uma coisa: Você usa muita vírgula. Poupe-as um pouco mais. Cordialement (em francês) seu admirador, M.F."

Perguntei sobre a veracidade da mensagem e se realmente ela se dirigia a mim; se podia haver uma mínima alteração, edição qualquer nas palavras do remetente, inclusive se as vírgulas realmente estavam bem empregadas e etc. Então o hacker respondeu: "Sobre as conversas, eu não sei lhe dizer. Não tenho mais essas mensagens aqui comigo, mas foi um hacker. E quanto às vírgulas, elas já operam sob a nova lei que flexibiliza as relações de trabalho. Fique tranquilo. Elas irão receber o que lhes são justo e irão se aposentar, quem sabe algum dia." Fui dormir com medo. Tive pesadelos. Quando acordei, me deparei com a TV ligada. Passava o programa do Domingo Show, de Geraldo Luís. Ele contava uma intrigante história de uma padaria onde que o dono, melhor funcionário do mês, não conseguia nunca viajar e tinha um padeiro - um cão lavrador de Santa Catarina, que imitava Cacatuas e que é rendido por uma gata na vigésima fornada.

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