Nietzsche, o imor[t]al



Cada período tem sua particularidade. Cada geração se transforma, se adapta; tudo flui e ganha forma no agora, no agora, no agora... A cada tempo, seja como numa fração de segundos, seja a cada mil anos, pensamentos já firmados outrora, vão brotando novamente, ora aqui, ora ali, servindo a diversos propósitos. Isso acontece quando lemos livros de pensadores, até mesmo os antiguíssimos escritos dos gregos do século quinto antes de Cristo, por exemplo, e conseguimos encaixar seus pensamentos perfeitamente no hoje, no agora, sem erros, sem ter que aparar arestas, significá-lo perfeitamente. 

Sobre isso, mais ou menos, Descartes já afirmava, no Discurso do Método, que "a leitura de todos os bons livros é como uma conversa com as pessoas mais ilustres dos séculos passados [...] uma conversa refletida na qual eles só nos revelam seus melhores pensamentos". Então, aproveitando-se deles - como se numa fórmula matemática -, seria como se aplicássemos, hoje, suas sabedorias mais antigas com o intuito de saber o peso de um objeto; qual a distância entre corpos; qual velocidade de X; conflitos ou paradoxos éticos e assim por diante. Além de eles ainda servirem de apoio, de fundamento, para com situações também conflitivas em respeito à questões políticas, atualmente. Obviamente que a Filosofia, seja antiga, seja contemporânea, não se reduzem a isso apenas. 

Igualmente, acontece sobre certas obras, capítulos ou parágrafos de um cara, não tão antigo assim e com uma Filosofia densa e complexa, chamado Friedrich Nietzsche. No entanto, nesse caso deve-se “pisar em ovos”, ao citá-lo, compará-lo, transportá-lo, para nosso tempo e/ou contexto. Mas vou utilizá-lo neste texto para tentar me expressar sem recorrer às puras e simples visões que tenho dos objeto que me afetam. Portanto, fá-lo-ei na intenção de elucidar o que hoje se passa em nossa convivência, em nossas trocas e relacionamentos diversos.

Por conseguinte para se estar alinhado com seu pensamento, requer leitura de praticamente todas as suas obras e outras quais o próprio filósofo alemão teve de trilhar para chegar onde chegou; e isso não é simples. Por isso, esse texto não ter muito fundamento acadêmico. É um pequeno exercício. Ademais, com isso não quero dizer que o Filósofo está certo e todo ser humano ocidental, religioso, partidário, identitário, democrata, artista, civil ou militar, pai, mãe ou filho, estejam errados.

Primeiramente, sempre achei parte do pensamento de Niezsche incompreensível. Isso porque, como ele é muito hermético, cheio de cadeados que necessitam as chaves certas mais exóticas e raras, obviamente, realmente não entendia muita coisa em respeito a certos assuntos. Assim como eu caí em diversos erros de interpretação, outros mais também poderão. Algumas leituras o julgam aristocrata; outras, não tão errôneas, de machista. Exceto por essa última - sobre a mulher - que é bem visível, mas que faz parte da sua costura filosófica e tinha seu fundamento nos seus escritos (apesar de não ser louvável em alguns), isso prova o homem que era Nietzsche: um homem do século 19.

Segundo, a "aristocracia" interpretada à filosofia do alemão, já foi "crush" de diversos leitores e leitoras ao redor do mundo. Cada qual com sua peculiaridade. Principalmente no início do século 20. Intelectuais das mais variadas correntes se inspiraram nele; diversos outros ilustríssimos pensadores contemporâneos. Por exemplo, para o anarquismo espanhol, Nietzsche foi um revolucionário, por volta de 1910. Em 1930, aqui no Brasil, em contrapartida, a extrema-direita, com o surgimento do fascismo na Europa, usou sua Filosofia com um fim político. No pós-guerra, já no primeiro semestre de 1968, a extrema-esquerda o adotou como libertário; foi também na França, em 1970, que pensadores mais “rebeldes” como Derrida, Deleuze, Foucault brotaram fortemente no cenário filosófico… Nietzsche, de fato, foi uma grande figura para diversos movimentos, correntes filosóficas. (Atualmente, no Brasil, reconhecida mundialmente, temos, por exemplo, a Filósofa Drª Professora Scarlett Marton, especialista em Nietzsche - devo esse parágrafo às suas entrevistas).

Entretanto, quando nos deparamos com certos fenômenos na sociedade atual, em meio à década de 10, dos anos 2000 - e até hoje, em 2020 -, muita coisa já mudou: algumas, superadas; outras retrocedidas. Quanto às mudanças, isso é inevitável. E, acompanhando esses processos, Nietzsche se torna inevitável também. Diferentemente do período das guerras (primeira e segunda), onde que a ideia deste filósofo foi apropriada para fins políticos, no pós-guerra, Nietzsche, é erguido à figura central do anti-moralismo; brutal pugilista na luta pelos costumes não tradicionais (ou melhor, de nenhum costume), enfrentando os mais ortodoxos e conservadores; o anticonvencionalista, com seu conceito de niilismo e demais críticas ao ocidente e toda a cultura. Um mito - apesar de o próprio nunca ter erigido nenhum e, pelo contrário, escreveu uma obra simplesmente para derrubá-los -, um gigante, com potência titânica de pensamento libertário: libertar o ser humano do niilismo e de toda moral asquerosa e condenatória. Moral que nos amarra. Ancora as atitudes, o corpo.

Precisa-se muito de Nietzsche hoje. É tempo de rever a questão moral. O Nietzsche “político” morreu, esqueçam-no! Aquele “aristocrata”, quiçá, nem nunca existiu. Precisa-se trazê-lo à tona, mas como um crítico aos costumes, às práticas atuais. Da maneira que um pugilista gigantesco que foi, quem se atreveria a encará-lo? Quem suportaria suas marteladas? - já que ele filosofava com um martelo. Quando não, quem, no extremo da sua moralidade, iria conter a explosão nietzscheana? - uma vez que ele é a dinamite. Como Nietzsche mesmo já disse, em Ecce Homo, "... Um dia, meu nome será ligado à lembrança de algo tremendo - de uma crise como jamais houve sobre a Terra, da mais profunda colisão de consciência, de uma decisão conjurada contra tudo o que até então foi acreditado, santificado, querido. Eu não sou um homem, sou uma dinamite." 

Ler Nietzsche é entupir dinamite na cabeça. É estar disposto a implodir todo um mundo interno e explodir o externo também. Mundo esse criado pela própria mentalidade atual, moral e ocidental - carregada de conteúdo tóxico, diga-se de passagem. Ler Nietzsche é desvelar um mundo externo a si, conforme for a devastação da explosão. Sua leitura abre um embate épico dentro do próprio indivíduo. Por mais imparcial que se tente pegar sua obra, uma hora irá ceder à essa Filosofia.

Então, após esse conflito interno, a pessoa, já com a nova consciência em produção, começa a se libertar. Aquele choque de realidade começa violentamente remetendo àquele às contundentes reflexões e às consequentes decisões. Assertivas decisões. Livres de “filtros”, de quimeras ou enganos. Agora é o teu “eu” verdadeiro querendo, desejando; é tua pulsão se libertando de tuas antigas e tirânicas morais. Agora o corpo vence a alma; o concreto vence o ilusório, a fábula. Não te importarás como, ou por que és julgado; além disso, principalmente, não julgarás mais também.

No entanto, todo cuidado é pouco. O costume em fazer apontamento de dedos é milenar; esse costume costuma voltar à tona. Volta e meia é preciso umas marteladas para não cair nas garras da moral. Por exemplo: olhar o que o próximo possui ou o que ele pode (ou não) oferecer é como sangue quente que flui pelas veias. Só que é difícil não julgar. Sempre haverá um predicado atrelado ao sujeito. Porém sugere-se que se deve atentar, primeiramente, ao ato de abster-se do fenômeno em questão, ou o objeto que se apresenta; observá-lo. 

Pense: estás inserido numa panela de pressão, ainda destampada e, lá dentro, boiando consigo, diversos legumes e outros alimentos. Tudo girando, se misturando, se chocando, conforme a água vai sendo remexida. Eis que dado momento, tu sais, te eleva e observa do alto todo aquele “caos” dentro da panela. Leve como ar, livre e consciente, vês múltiplos objetos formando um todo multicor, “multimorfo”. Cada um com seu tamanho, seu gesto, sua atitude, sua cor, sua espessura… E você observando-os em meio ao vapor que o mantém flutuando sobre a panela. Apenas olhando. Sem condenação, sem julgamento, sem moralismo. 

Gostaria de remeter esta alegoria à atualidade. Século 21, dias atuais. Nesse sentido, carece-se, hoje, de um olhar, um olhar acurado, porém frio, ou seja, isento de qualquer ínfima moralidade. Um julgamento, talvez (?), mas não uma ofensa, agressão ou além disso, uma conversão de mais valores. Apenas relatar o que um olhar preparado viu. Será para isso, creio, que a citação em seguida virá, absorvida da obra Genealogia da Moral. Será com este propósito. Um olhar puro ao que se passa ante aos nossos olhos. Uma releitura dos valores. Um olhar àqueles que foram maus lutadores, perderam o combate e com isso culparam a vida. Eis:

Estes são todos homens do ressentimento, estes fisiologicamente desgraçados e carcomidos, todo um mundo fremente de subterrânea vingança, inesgotável, insaciável em irrupções contra os felizes, e também em mascaramentos de vingança, em pretextos para vingança: quando alcançariam, realmente o seu último, mais sutil, mais sublime triunfo da vingança? Indubitavelmente, quando lograssem introduzir na consciência dos felizes sua própria miséria, toda a miséria, de modo que estes um dia começassem a se envergonhar da sua felicidade, e dissessem talvez uns aos outros: "é uma vergonha ser feliz! existe muita miséria!"… (NIETZSCHE, 1995).

Sobre o ressentido, ele é, a princípio, intolerante; recusa a diferença e o devir. Além disso, possui ódio àquele que sai das amarras do fundamentalismo; daquele desvia-se milimetricamente da norma. A esse, o ressentido não perdoa. Desse modo, “fremente”, ou seja, agitando as mãos, o corpo, grita pela lei, pela democracia, por justiça e etc. Porém, fica a pergunta, com base no trecho: Qual justiça? Qual lei? "A tua lei?" Aquilo que é justo ao teu sabor, ao que lhe convém? A propósito, isso não é questão de relativizar, definitivamente, o que é justo ou não, mas é o ato de julgar segundo a sua moral. Porque, queira ou não, há casos em que o esse fundamentalismo, ao qual se agarra sua moral, é vencido; tem de se aceitar o que não lhe agrada. A justiça dos homens, por exemplo, vale mais o peso de uma validação da Ciência... 

Por fim, ainda como fio condutor da citação acima, estou me deparando com diversos exemplos no dia-a-dia sobre o ressentimento de alguns grupos. Como num ringue, cada um em seu “corner”, julgam o que lhes convêm; frementes - como espasmos -, cospem fogo, apontam dedos. Porém, amanhã, estarão contorcidos no seu canto, só que posando de vítimas dos mesmos socos e pontapés que usaram outrora contra o próximo. Condenam aqueles que não fazem parte do seu clubinho, mas odeiam serem questionados pelos mesmos motivos. O pior disso tudo é que os valores só vão se invertendo - e não há supressão deles. Vão mudando os pólos. Transformam o que é forte em fraco; o que é rico, em pobre. Nesses passos, o que realmente é rico e forte por natureza, acaba por ser julgado por esses ressentidos, generalizadamente e, dessa forma, cai na ilusão, na utopia, de que é um coitado: pobre e fraco. Ou seja, ao invés de o ser humano seguir seu caminho rumo ao “além do que ele é” (ao “além do homem”) - tornando-se apenas ser humano -, não. Inerte, fica nesse estado como um primata. Quiçá, retrocedendo ao que é um verme sob o jugo moralista, sob uma opressão tirânica de ressentidos e pobres desvalorados, sem pulsão, sem tesão pela vida como ela é.


Bibliografia

NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. 1908. Companhia das Letras, São Paulo, 1995; p. 109.

NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. 1887. Companhia das Letras, São Paulo, 1995. §14.

DESCARTES, R. Discurso do Método. 1637. Editora Nova Cultural Ltda, São Paulo, 1999. p. 9.


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