Uma conversa com David Holme





Edimburgo, Escócia. Reino da Grã-Bretanha, 1744. Passava seu tempo um senhor, sentado em um grande banco de madeira, elegantemente, apreciando um vasto campo perfeitamente ornamentado com algumas flores que destoavam no cenário verde e frondosas árvores ao fundo. Além de toda essa ordem, beleza e sincronia da natureza, havia, de um jovem, a destreza e que, afoitamente, passava resmungando em língua gaélica, algo um tanto preocupante - contrastando a natureza do belo lugar -, e que ganhou atenção do nobre senhor. E ele puxou assunto:

Olá - disse o senhor.


Oi - respondeu o jovem embaraçado.


O que lhe aflige? Podemos conversar?

O jovem se sentou. Se jogou, melhor dizendo. Batendo suas pesadas costas no encosto de madeira maciça que servia de banco para os dignitários do castelo local. Dizia ele, como que dando sequência ao seu pensamento:


Temo minha mulher estar grávida. Mas não é a gravidez nem muito menos nosso futuro filho. Quanto a mim, prestes a partir em uma rebelião contra o exército real britânico. Eu a prometi trégua, paz, mas...


Mas... Vejo que a promessa foi só para com sua esposa e não ao exército inglês.


É verdade. Por isso eu choro. Mas as vezes sinto que não é por isso. Não somente, me entende? Estou confuso.


Você se acha assim?


Não sei lhe responder exatamente. Tentarei, meu senhor.


Pois bem… - insistiu o velho cavalheiro.


Parece ser um misto de coisas: ora ser apenas o amor por minha amada, ora ódio aos ingleses. Há também uma sensação de perda…


Qual?


De meu filho. Caso minha mulher esteja esperando um; e a perda dela própria também.


Temes à morte?


Sim! Não... Assim… Minha própria vida em batalha, não. Mas, o medo se dá mais pelo motivo de saber que minha mulher ficará sem mim e um possível filho sem seu pai. Ou quando e se eu retornar da guerra não encontrá-los mais aqui...


Parece uma situação difícil. Mas és forte, jovem e tomarás a decisão correta. Veja… Posso lhe confiar um segredo?


Pois não senhor… É algo sobre os bastardos ingleses?


Não! Pare com conspirações - ralhou o senhor.


O que é então, diga-me.


Recentemente “algo” me surgiu. Não doloroso, ou triste… - contava o nobre senhor - Também não era uma alegria imensa.


O que seria então?


Eu estava sereno, consciente, porém chorando torrencialmente. E essa "coisa" que, no âmago brotou, surgiu com um leve pensamento. Ou melhor uma lembrança. Uma imagem que tive de outrora, de um fato. E foi tão rápido que atingiu-me de supetão. E foi crescendo, ganhando intensidade essa tal sensação.


Como o que senhor ?


“Like a violin concert, in G minor. By Johann Sebastian Bach”. - disse o senhor, se referindo ao concerto de Bach.


Allegro? - perguntou, curioso o jovem.


Largo…


Que maravilha! Minha parte do concerto predileta.


É genial…


É verdade, mas… Prossiga meu nobre.


Sim e, retomando o assunto, que ainda lhe parece embaçado, o começo foi pura suavidade, como que flutuando no céu ao doce som do violino. Naquele momento eu ia me concentrando ao que crescia em meu coração, sendo ligado de maneira íntima, gradativamente. Conforme os mágicos impactos iam me atingindo na mente, o choro aumentava e as lembranças também, consequentemente.


Deve ter sido um momento maravilhoso.


Ouça - seguiu o senhor -, talvez eu tenha provado do sabor, gostado do paladar e fui me alimentando cada vez mais desse sentimento: um misto de saudade com carência.


De quem, senhor? Estás amando? Alguém que já partiu? Ou que acabou de chegar?


Não. Tudo o que se passou foi, estranhamente, ao alento, a lembrança de uma ave que tive há pouco tempo. Uma magpie.


O que? - assustou-se o jovem, quase que caindo na grama.


Sim. E eu que nem a tratava por um nome.


Você não tinha dado nome a ela? Uma das aves mais inteligentes do mundo, magpie e... Você nem a chamava pelo nome?


Nem isso. Ela não era minha, vivia pelas redondezas. Mas não sei por que cargas d’água entrava sempre na minha residência.


Um pássaro, meu senhor…? Achei que fosse uma lady, uma bela senhora que lhe havia tocado o coração.

O jovem escocês riu por um bom tempo. Porém, ao perceber o desconforto do seu nobre interlocutor, como um gentleman, logo se recompôs. Após alguns segundos em silêncio, então, continuou seu relato, o idoso:


Eu tratava o passarinho com muita docilidade e carinho. Ela me fazia companhia. Estava sempre ao meu lado. Parecia a guarda real, ou os conselheiros com sua majestade: sempre paparicando o rei. Este pássaro stava em todo lugar onde eu ia. Até durante meu banho, estava ela lá na porta a me esperar; sempre querendo carinho, além de água, graõs e algumas verduras. Fiel e companheiro. Assim como dizem dos cães. Porém era uma ave e muito inteligente. Isso me cativou bastante.


Estou começando a ficar comovido, não estou sendo irônico.


Não há de quê, jovem. Uma vez que ele foi embora e ficou muitos dias sem retornar, achei que o tivesse perdido de vez. Mas ele não era meu. Aquele pássaro não tinha dono. Eu, até então, não havia me apegado tanto assim. Pouco me importava, afinal. Mas... Dias antes havia me acontecido algo. E agora sim entra a lady que você imaginou de pronto, no começo de nossa conversa - comentou o senhor -, ela que havia me despertado uma paixão. Algo repentino e muito breve, mas mexeu comigo profundamente em meu coração. Com isso, aposto, projetei naquele dócil animal um sentimento que pode ser dessa situação.


Da dama, no caso. 


Sim. Ou, muito embora, talvez algo advindo de uma segunda consciência. Consciência secreta ou privada (o que seria o inconsciente freudiano). 


Credes nisto?


Ainda não, reflito muito e busco respostas concretas. Não só para o caso acima, relatado, como também para este que lhe direi de mente aberta.


Prossiga - disse o jovem.


Naquele momento, enquanto chorava por conta da ausência da magpie, eu sentia coisas muito profundas. Poderia, eu, também, ter tido uma vivência, presenciado um fato ocorrido em algum lugar onde minha alma pudesse estar não-aqui, oriunda de um universo em paralelo, enquanto que, no mesmo momento fazia sentido o reflexo em meu corpo no aqui-agora. Como, por exemplo, revivendo - ou até mesmo vivendo em tempo real - a situção em que estive ao lado daquela dama, a qual lhe falei agora. Ou algo muito anterior ao momento em que estive com ela. 


Nossa!


Não sei exatamente... Quem sabe, quiçá, coisa tão profunda e inatingível conscientemente que... Levaria milhões de anos para alcançá-la dando hoje a partida, por mais que eu tivesse lembrança de todos os momentos da minha vida.


Não é possível, pois. O senhor seria, então, "dois"? Vivendo lá e cá?


Quem sabe? Eu também refleti, meditei muito e me veio o seguinte - continuou o senhor - dois seriam os “caminhos” vividos por uma única e exclusiva pessoa. No caso, eu. Tanto corpo quanto mente, unos. Um caminho concreto e outro abstrato, no mesmo tempo-espaço. Enquanto eu trilhava-os pelo meio. Uma via de mão-dupla: o que eu via numa, confundia-me com outra e, a síntese, rolou em lágrimas no instante que lhe falei. A magpie e a dama misteriosa seriam, uma a realidade e a outra a abstração. Compreendes?


Não muito, mas continue!


Mudarei a poesia. Que tal uma outra, desta maneira...


Comece!


Acredito que meu sentimento pode ter ficado retido, bem aqui comigo, no íntimo, talvez de longo tempo ou recente, não sei lhe dizer, infelizmente. Posso ter transferido alguma paixão ou uma ausência de alguém para o agora, ou seja, para o exato momento em que eu chorava e ter, aparentemente, encarnado aquilo na simpática ave. Tadinha, serviu como objeto para eu relembrar alguma saudade contida, porém, pra lá de esquecida, sem ter asas ou sequer sapiência para alcançar o alto e límpido espaço de minha consciência.


Ou isso tudo foi como um porto seguro, uma fuga, para o senhor ancorar teu coração advindo de um mar escuro, turbulento que, violento se chocava contra o farol, ofuscando-lhe toda luz. Luz esta que todo o teu sentimento conduz.


Verdade! Pode ser. Mas entendeste, meu jovem? Por fim, estou aliviado por não ter sentido nada grave como algumas loucuras e coisas do tipo... Não foi nenhum choro de desespero como já vivido em outros momentos, nem nenhuma angústia qualquer, nada parecido. Na verdade a coisa se deu levemente e de tudo me foi um alívio permanente.


Meu senhor, deixe-me perguntar - dizia o jovem - isso tudo lhe foi algo parecido com uma saudade de um ente que uma breve viagem faz?


Sim, exatamente! Parte disso, aqui no meu peito jaz.


Se assemelha com a ida do passarinho que fez o senhor se sentir sozinho. Essa na verdade é a saudade?


Perfeitamente. Contudo, o que me assustou foi a tamanha intensidade e a veracidade de tal confuso sentimento. O choro, na verdade, foi por saudade de um pássaro, este que eu cuidava há pouco tempo e me acompanhava. Um misto sentimento de carência, ou melhor, ausência da sua companhia que, comigo viveu, parecia que por mil anos. Pobre ave.


Mas cavalheiro, o senhor não sabe de onde vem em todo teu sentimento? Por exemplo, essa emoção, saudade, tristeza ou alegria por completo? Achas mesmo que se dá somente pelo sentimento da perda por um pássaro? Como coisas momentâneas e que nos marcam muito? 


Eis a questão. Acho que não.


Pelo que me dissestes, és sabedor de muitas das coisas que dizem respeito à nossa vida, à nossa emoção. 


Sinto-me lisonjeado, obrigado - agradeceu o nobre senhor.


Pois bem... Desde a duração até sua intensidade: quando ela chega, essa emoção, e quando vai embora, falas com orgulho, ou melhor, com propriedade. Não sabes, tu, meu senhor, realmente, o que lhe toca no âmago? Tens certeza de que és cego para um sentimento, que nenhum frio sentes no estômago? Ou melhor, para uma percepção íntima, quiçá um afortunado pressentimento? Ou não seria um devaneio, porventura?


Delírio... - riu o senhor - meu jovem, pode até ser. Contudo, descartando não ser esse o caso, não ouso mergulhar no mar escuro, frio e profundo, pois lá, não só, morrerei sozinho e privado da razão, como congelado sem nenhuma esperança de salvação. As profundezas da nossa mente é abismo inabitável. Muito menos comandamos suas marés. As afecções da mente parecem vir de outro dono, de outro ser que não sei quem é. Ainda com mais clareza sei que nós próprios não somos quem a controlamos.


Então, quem seria esse ser?


Advém de um lugar desconhecido, isso é fato. Até então, não se pode haver um ser que controle outro ser: ou seja, não há um outro por trás de nós, nos mandando informações, sentimentos, razões e etc. Mas também nós não somos aqueles quem direcionamos ou comandamos essas afecções. Elas brotam sem que nós saibamos ou, muito menos, requisitamos-na. São praticamente atos involuntários. 


Entendi - concordou o jovem.


Eis essa incógnita! Quem ou o que nos envia pensamentos, ou sentimentos diversos se não nós mesmos? Mas nós podemos fazê-lo conscientemente, não é?


Perfeitamente


E agora, o que tendes a dizer da consciência secreta, ou privada? (o inconsciente).


Não faço idéia, senhor.


Nessa nossa mente e, alguns de nossos pensamentos, reflita, meu jovem - solicitava o senhor -, não somos nós quem damos conta. Não somos senhores delas.


Por exemplo - pedia o jovem.


Teu desabafo há pouco! Falaste até na morte de um filho que ainda não possuis. Querias mesmo pensar assim a todo instante? Declaraste trégua, paz, mas só pensas em partir para o ataque contra o exército do Rei inglês. Preocupa-te com tua mulher, com tua ausência, mas se vier a passar outro jovem aqui, armado, à cavalo, convocando-te, irias sem pestanejar. És dono desses pensamentos todos? Desses impulsos, sentimentos? 


... - pensava o jovem.


Agirias como a um rato depois de flagrado roendo a janta do rei: sem pensar para onde ir, o que fazer e etc. Porém, com certeza, irias tomar um rumo que lhe abrigasse de boas sapatadas - ria o senhor - mas, sem saber como, ias fugir sem arquitetar um passo a frente sequer.


Realmente. Ainda mais com umas doses de whisky, não se sabe mesmo onde a gente pára, como vai, para onde vai... Mas quando tudo termina, estamos entre os trapos que nos acolhe todas as noites.


É verdade...


Lindo relato senhor. Olharei com muito cuidado por sobre isso agora. Creio que exercitando meu pensamento, sendo mais atento, agindo sem tantos impulsos, poderei evoluir bastante a ponto de enxergar, o mínimo possível, pelo menos, tais sentimento ou essas afecções que me mostrastes. Devo deliberar mais minhas abruptas vontades. Quem sabe assim consigo enxegar melhor o mundo a minha volta, o mundo de verdade?


O farás! E todos nós, jovem guerreiro, todos nós necessitamos desse tempo mínimo entre um impulso e sua ação propriamente.


Lhe adimiro! - elogiou novamente o jovem ao seu interlocutor -. Vejo-te em alto lugar em qualquer reinado, diante de qualquer rei e enalteço-o por isso. És possuidor de um nobre coração e repleto de virtudes.


Não concordo muito com o que disseste - ria o senhor timidamente -, mas estou grato pelo puro sentimento teu que, identificaste nesse momento, e que, a mim foi direcionado e me sinto lisonjeado. És muito sincero. Que momento aprazível!


Não há de quê, senhor. Eu lhe agradeço. E consigo, melhor agora, olhar para minha mulher e para uma futura guerra e entender tudo o que o senhor sentiu, e posso sentí-lo também - pôs-se a chorar o rapaz. Entre esse “caminho” concreto iluminado e o abstrato sem brilho, escolho minha mulher e meu futuro filho.


Sábia decisão.


Desejo-te que reencontre, seja a querida ave magpie, seja a estonteante lady que tanto pairam em vosso pensamento e lhe tocam fundo no sentimento. Seja lá qual for delas as que lhe comove mais, que sejas muito feliz em sua companhia apraz.

O jovem se levantou e despediu-se do nobre senhor. Nunca mais se reencontraram. “Prazer - disse o rapaz antes de se retirar -, me chamo Jamie”. Já o Senhor Holme ali permaneceu e nunca mais esqueceu daquele dia, daquela tarde, daquele cenário, do jovem Jamie e de milhões de outros jovens e histórias que ele ouviu e contou daquela mesma forma, naquele mesmo banco, assim por milhares de anos até depois de sua morte. Pois suas palavras se tornaram atemporais. Ainda hoje são lidas e relidas, contadas e recontadas oralmente por milhões de pessoas mundo afora. E assim que termina a história... Ou ela estaria apenas recomeçando?

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